O Globo
Denúncia foi associada à tese de que o PT
seria o braço político do crime organizado
Numa democracia funcional, cabe à oposição
sustentar a rigorosa fiscalização do governo. Em nosso ambiente polarizado,
porém, muitas vezes ocorre o oposto: a irrazoabilidade da oposição cria
obstáculos ao escrutínio das ações do governo. Imprensa, Justiça e órgãos de
controle abandonam linhas de investigação com receio de alimentar um delírio
que pode ter consequências nefastas. Vimos esse mecanismo em ação nesta semana
no caso da esposa do líder do tráfico do Amazonas recebida
por autoridades do Ministério da Justiça.
O jornal O Estado de S.Paulo noticiou que a mulher do líder de uma facção criminosa amazonense — condenada, ela também, em segunda instância por participar de atividades criminosas — fora recebida em audiência por um secretário e importantes assessores do Ministério da Justiça. A reportagem não era devastadora, mas acendia um alerta. Não havia motivo para supor que o governo tivesse deliberadamente recebido alguém com vínculos com o crime organizado. Mas tinha havido uma falha na segurança, na inteligência e nos protocolos do ministério que precisavam ser apontados e corrigidos.
No decorrer da semana, quando a imprensa
revelou que ela havia viajado para Brasília com recursos do Ministério dos
Direitos Humanos e que também fora recebida pelo Conselho Nacional de Justiça e
se encontrara com parlamentares, a falha se mostrou maior e mais disseminada.
Se a imprensa revelasse o problema, e a
oposição o condenasse, estaríamos no jogo regular da democracia. Mas havia
outro elemento, subterrâneo, que complicava a situação. No submundo da política
da direita, nas mídias sociais, prospera a ideia estapafúrdia de que o PT e o
crime organizado têm laços fortes e profundos. Em alguns casos, se chega a
dizer que o PT é o braço político das principais facções criminosas do Rio de
de São Paulo. Não se trata propriamente de uma notícia falsa, mas de uma tese
duradoura que vem sendo alimentada por uma série de mentiras e distorções nos
últimos anos. Não há nenhuma evidência persuasiva que sustente uma acusação
dessa gravidade — mas há uma profusão de insinuações, ilações e mentiras. Não
obstante, ela parece amplamente difundida entre a militância e o público de
direita.
A referência implícita a essa tese
subterrânea absurda transformou uma falha nos protocolos para audiências com
autoridades num caso gravíssimo. No discurso da militância e de alguns
parlamentares, era como se a audiência revelasse ligações do PT com o crime
organizado. A coisa atingiu tal proporção que o próprio presidente Lula saiu em
defesa do ministro da Justiça, Flávio Dino.
Uma vez que a denúncia foi associada à tese
de que o PT seria o braço político do crime organizado, o tema ficou
contaminado pelo estigma da birutice. Pessoas sérias passaram a se afastar dele
— para não ser confundidas com os fanáticos e para não alimentar o delírio. O
resultado é que o tema vai aos poucos saindo de pauta e ficando restrito ao
recanto onde reside a gritaria engajada.
Isso é ruim para a democracia. Esse tema
deveria ser mais investigado porque, obviamente, há um problema em alguém
condenado por participar do crime organizado, que a polícia acredita fazer uso
de uma ONG fajuta para promover os interesses da facção, se passar por uma
legítima ativista de direitos humanos indicada por um comitê estadual oficial.
O caso parece mostrar que o crime organizado
não está apenas se infiltrando na Justiça e na política, como mostram algumas
reportagens, mas também nas ONGs. Seria bom se pudéssemos investigar e entender
o alcance disso sem medo de sermos capturados pelo discurso delirante.
Um comentário:
Excelente!
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