quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Roberto DaMatta -O cru e o cozido da política

O Globo

Nas campanhas tudo se discute, menos a pedra fundacional da nação: o modelo elitista edificado na casa, jamais na comunidade

No nosso teatro público, o “político” faz o cru virar cozido. Tudo o que depende de respeito impessoal — este cru contido na lei que é a alma da cidadania e do igualitarismo democrático — é devidamente cozido em fogo brando depois que o “candidato” se transforma em “eleito”, é investido e personaliza um cargo público.

O cru está para o cozido assim como o candidato está para o eleito. A transformação de um no outro é obra da culinária “política”. Um cozimento rápido, rasteiro e revolucionário, pois leva o sujeito que quer se eleger a prometer mudanças ao governista reacionário, avesso a qualquer avanço.

Reparem: o “candidato” é sempre um revoltado que surpreende porque vai, digamos, redimir as tais contas públicas sempre desajustadas. Mas, uma vez “eleito” e enfaixado, as brasas da política iniciam o cozimento, e logo ele muda e volta ao programa onipotente dos populismos.

A mestra ou responsável por essa mudança é uma velha atriz: a “política”. Essa arte de cozinhar em fogo lento que nós, os comuns, tachamos de “jeitinho”, “jogada”, “roubalheira” ou “malandragem”. Não deixa de ser lamentável que esse instrumento de paz e progresso, a Política (com P maiúsculo), tenha seu lado de tramoia e engano.

Mas, infelizmente, é a política com “p” pequeno que cozinha o cru e cruel do juro alto, contra a farta distribuição da identidade político-social de pobre — uma categoria que, sem querer, mas talvez sabendo, engendra um sistema de diferenciação de que é difícil sair por sua imensa coerência cultural com as hierarquias que conformaram toda a História do país. Uma terra formada por meio de um aristocratismo centralista, avesso a qualquer ilustração que não fosse o Direito Canônico ou processualista, com sua arte e ciência de interpretar indefinidamente as normas e, desse modo, imobilizar imoralmente, mas dentro da lei, o sistema de poder.

No papel de candidato, porém, o sujeito é um liberalizante revolucionário em economia e um republicano nato em política. Nesse campo, desmoralizado no Brasil pela “politicagem”, ele fala em contrariar nossa índole relacional, cuja maior característica é o englobamento da regra e da lei pela amizade, pelo compadrio e pelo parentesco. Vale, pois, observar que nas campanhas tudo se discute, menos a pedra fundacional da nação: o modelo elitista edificado na casa, jamais na comunidade. Comunidade que nas grandes cidades transformou-se em antro de bandidos, traficantes e milicianos ao lado de gente sofrida e honesta. Essa é uma vergonhosa criação nacional.

Como, confessa um político escapando da malandragem “política”, nomear um correligionário competente, preterindo um cunhado ou um primo-irmão? Prefiro, conclui zangado de razão, ficar sem ideologia do que perder o afeto da família.

Certamente é melhor ficar com o conservadorismo da casa que com o mudancismo confundido com transformação da rua. Pois as normas da casa, além de óbvias (não roube do seu pai, não se case com sua irmã, não reclame da comida...), não são escritas ou debatidas. Nós as internalizamos, elas fazem parte de nossa vida. Mas em “política” tudo, ou quase tudo, chega de fora para dentro. Tal como o “candidato” que hoje cobra do “eleito” aquilo que ele deveria fazer — do mesmo modo que, uma vez eleito, faz como recrimina o candidato.

Pena que eleitos e candidatos não redefinam o conceito de político, tirando-o da mera esperteza ou mentira e de um realismo burro e reacionário do poder como um jogo em que vale tudo.

Por fim, é curioso observar que o candidato sempre tende ao progressismo, enquanto o eleito acerca-se do conservadorismo ou de uma trivial repetição. Quanto mais não seja, porque, numa sociedade de índole autoritária, os cargos públicos, além de enricar, oferecem privilégios e prerrogativas que o público não conhece e, como quer a elite, não precisa conhecer.

 

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