Correio Braziliense
Devido às mudanças no Senado, que criará 10
exceções a serem regulamentadas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
quer “fatiar” a reforma tributária
Brasileiro ilustre, o geógrafo Milton Santos
(1926-2001) era um especialista nas relações entre o atual modelo de
globalização e as periferias do mundo e sua economia. Seu olhar sobre esse
modelo de desenvolvimento era muito focado na compreensão das desigualdades e
da exclusão social. Por isso, sua geografia desenvolveu novos conceitos sobre
espaço, lugar, paisagem e região, nos quais o fator humano era central. Com 40
livros publicados e 20 títulos de doutor honoris causa, o geógrafo continua
sendo uma referência mundial nas ciências sociais.
Os conceitos de Santos nos permitem ligar dois assuntos que estão na ordem do dia aqui no Brasil: o apagão provocado pelas chuvas em São Paulo e a reforma tributária em aprovação pelo Congresso. São exemplos de captura das políticas públicas por grandes interesses privados, em detrimento do que o professor Santos chamava de “vida banal” da população, ou seja, o cotidiano dos cidadãos. Nas periferias, isso tem o agravante da presença do tráfico de drogas e das milícias no espaço vazio criado pela ausência de políticas públicas eficientes e inclusivas.
Por exemplo, o governo federal cobra
providências e explicações da concessionária Enel sobre o apagão em diversos
pontos da capital paulista. A queda de energia aconteceu após temporais
atingirem a cidade e chegou a afetar o funcionamento de locais como o Parque
Ibirapuera, onde está sendo realizada a 35ª Bienal de São Paulo, e escolas que
realizariam o Exame Nacional do Ensino Médio.
O apagão já dura seis dias para 200 mil
domicílios e chegou a atingir 700 mil imóveis, o que provocou enormes prejuízos
para a indústria, o comércio e os serviços, principalmente na área de
alimentação.
A Enel é uma empresa italiana, que ganhou as
concessões de distribuição de energia em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e
Goiás, onde deixou de operar depois de pressionada pelo governo estadual, em
razão da má qualidade dos serviços. A ex-companhia estatal se tornou uma
multinacional depois de privatizada, com atuação também na Espanha, Croácia,
Sérvia, Rússia, Chile, Argentina e Peru. Atuava em El Salvador, mas foi
obrigada a sair do mercado de eletricidade por causa de uma disputa com o
governo local.
Justiça tributária
O apagão prolongado não é culpa somente da chuva, trata-se de um caso de
captura de políticas públicas por uma megaempresa, capaz de fazer lobby
poderoso para manter seus lucros em detrimento da qualidade dos serviços que
presta à população. Obviamente, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
que deveria fiscalizar esses serviços, também foi capturada pelo lobby das
empresas do setor. E o que tem a ver o apagão com a reforma tributária? Muito
mais do que se imagina: a reforma está sendo domada pelos lobbies empresariais
com antecipação.
Na terça-feira, a Comissão de Constituição e
Justiça do Senado (CCJ) aprovou por 20 votos a seis o relatório do senador
Eduardo Braga (MDB-AM). O texto é um avanço em relação ao sistema tributário
atual, mas terá uma alíquota estimada em 27,5% do valor das mercadorias, o
segundo maior imposto do mundo (perde para a Hungria), em razão dos subsídios e
exceções que estão sendo criados. Mesmo assim, a equipe econômica do governo e
grande parcela do empresariado defendem a reforma, que vai simplificar o pagamento
de impostos, mas isso não resolve o problema da justiça tributária. O cidadão
comum pagará a conta dos subsídios e exceções.
Nesta quarta-feira, o Senado deve sacramentar
a proposta em plenário. Cinco impostos serão substituídos por dois, sobre o
chamado “valor agregado”. PIS, Cofins e IPI serão fundidos no CBS (Contribuição
sobre Bens e Serviços), de competência federal. O ICMS (arrecadado pelos
estados, mas compartilhado com a União e os municípios) e o ISS (municipal)
darão lugar ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Todos os impostos serão
cobrados no destino, onde os bens e serviços são consumidos, o que deve pôr fim
à guerra fiscal. A transição para o novo sistema terá a duração de sete anos,
de 2026 a 2032.
O texto a ser votado no Senado mantém a
criação de uma cesta básica nacional de alimentos isenta de tributos, aprovada
na Câmara, mas alguns alimentos que foram acrescentados pelos senadores pagarão
60% das alíquotas. Treze setores pagarão apenas 40% do imposto. A reforma prevê
a criação de um Imposto Seletivo, de competência federal, sobre bens e serviços
prejudiciais à saúde e ao meio ambiente — como cigarros e bebidas alcoólicas.
Devido às mudanças feitas no Senado, que
criou 10 exceções a serem regulamentadas, o presidente da Câmara, Arthur Lira
(PP-AL), anunciou, nesta terça-feira, que a reforma tributária pode ser
“fatiada”, o que possibilitaria a promulgação de partes em que haja consenso
entre deputados e senadores. Ou seja, as mudanças propostas pelo Senado estão
no telhado.
O que é uma pena.
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