quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Wilson Gomes* - Excomungados, banidos e proibidos: a nova era da intolerância

Folha de S. Paulo

A esquerda identitária chega à universidade para tentar reeducar professores

O princípio da tolerância tem dois componentes: as formas de vida são essencialmente diversas; a decisão de que uma fé, doutrina ou obra é falsa não é critério legítimo para desrespeitar quem a sustenta, proibir a sua existência ou atuar de forma autoritária ou violenta contra ela.

A tolerância se dá quando se reconhece que o direito que o outro tem de manter uma convicção, mesmo que eu não a considere verdadeira ou edificante, não é menor que o meu direito de sustentar convicção diversa.

Estamos vivendo uma nova era da intolerância? Tudo indica que sim.

Há poucas semanas, a representação discente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFBA fez abaixo-assinado para que fosse removido um quadro do pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares, "Alegoria da Lei Áurea", que é parte do acervo do casarão onde funciona a Escola de Belas Artes.

A escola, uma instituição fundada em 1877 pelo próprio mestre espanhol, deveria retratar-se imediatamente por ter esse quadro exposto em suas velhas paredes, além de retirar o nome do pintor da sua galeria Cañizares, "como forma de reparação histórica". A representação de um "gesto de suposta benevolência das elites brancas e, concomitante, de subalternização de pessoas negras" seria intolerável.

Assim, o quadro deve ser enclausurado, para que a ninguém ofenda ilustrando um passado que não queremos ver ou refletindo uma época em que não se pensava como nós.

Há poucos dias, o governo de Santa Catarina resolveu banir das bibliotecas escolares nove títulos, escolhidos aleatoriamente segundo o critério do censor. Por quê? Não se sabe nem se diz. Livros fazem um mal danado a quem os lê, como sabe todo censor, e não há jeito de impedir que instilem maldades sem evitar que sejam lidos.

Não faz muito tempo, quando Sérgio Camargo reinava na Fundação Cultural Palmares sob Bolsonaro, Marco Frenette listou em nada menos que 74 páginas os livros da fundação destinados ao banimento.

A lista de livros, quadros, exposições, espetáculos, palestrantes, cantores, comediantes considerados merecedores de rogo, proibição, boicote e assédio, somada ao rol de professores, autores e artistas cancelados e demitidos por pressão e ação de conservadores nos últimos oito anos superariam facilmente as 74 páginas de Frenette. A lista da esquerda não é muito menor. Mudam as justificativas, resta a intolerância.

Na semana passada, o professor titular de sociologia da Unifesp Richard Miskolci, autor de "Batalhas Morais", especialista em gênero e sexualidade, foi declarado "persona non grata no âmbito epistemológico e ético do transfeminismo brasileiro".

Esse tipo de declaração, no âmbito em que faz sentido, tem como efeito declarar que uma pessoa não é bem-vinda em um país, sendo obrigada a deixar esse território sem direito de retorno. Miskolci foi banido de um território acadêmico, sua presença passou a ser considerada "inaceitável e contraditória".

O crime? Defendeu argumentos contrários a "conceitos fundamentais do transfeminismo, como a cisgeneridade". Como se atreve um cientista a defender teses contrárias a dogmas?

Quem enfrenta dogmas não é um racionalista, como pretende toda a tradição ocidental desde a filosofia grega, mas um negacionista, um (não se assustem, mas foi o que escreveram) "epistemicida". Negar um conceito é "epistemologicamente violento" e pode ser instrumentalizado "por movimentos autoritários e conservadores", não democráticos, nem progressistas e tolerantes como nós que o declaramos pária.

Em um seminário sobre liberdade de cátedra, na semana passada, uma professora lamentava comigo as irrupções de autoritarismo, dogmatismo e sectarismo que dominam a esfera pública, argumentando, contudo, em favor da crença iluminista de que a educação teria o condão de reparar essa situação.

Somos professores, é da nossa natureza acreditar que mais e melhor educação cura tudo.

Mas como, se a irrupção da intolerante extrema direita é um fenômeno que atinge em cheio sociedades bem-educadas? Se a esquerda identitária, a quem se estenderam tapetes vermelhos para que entrasse na universidade, demonstra não ter vindo para ser educada, mas para reeducar os professores dóceis e castigar os renitentes? Se chegamos ao ponto em que um foro com reivindicações científicas defende que há teses que não podem ser cientificamente desafiadas sob pena de excomunhão?

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

4 comentários:

  1. ■O Brasil é um retrato do mal que os despreparados para a cultura podem fazer contra a própria cultura.

    São "filósofos" , "sociólogos" , "historiadores" e até "economistas" cheios de discussões cuja criatividade consiste em ser o mais igual possivel, em ideias curtas, nos deploráveis jargões, e em tudo!

    Em casa eles não devem ter uma biblioteca, mas um manual a eles comum e uma espécie de bíblia. E treinam em frente a um espelho para terem tons e gestos iguais a quem é "do" seu "polo".

    Pelas falas "brilhantes" que tem feito neste mandato, dá para inferir que o Lula resolveu abrir suas cópias do manual e da bíblia e anda exercitando nos discursos o que aprende nos livros... nestes dois "livros".

    Bolsonaro chega a ser um político hipermoderno e aprende e ensina (quero dizer:: é doutrinado e doutrina) por meio de Lives (sem essa de livros com Bolsknaro).

    Os do PT usam mais é a leitura direta nas madrassas-digitais "Brasil171", "não-vi-o-mundo", "ggn" e coisas assim.

    Não ouse contestá-los:: eles vão exercer o democrático dereito de lacrar você, que está tão pouco familiarizado com esta versão de alta-cultura política que nem o que significa "lacrar" você sabe.

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  2. Gostei bastante do seu texto, Professor Wilson Gomes. Em geral, sempre me vi como um "estranho" dentro da Universidade, não por apoiar as teses da direita ou da esquerda, mas pelo modo como seus líderes universitários a interpretam (estou me referindo à minha Guilda de maneira especial). Aliás, enxergo aqueles (alguns) que as interpretam como uma espécie de aristocratas cristãos que citam o Evangelho de João, mas discordam de Paulo, Mateus e tanto outros que não atendem aos seus interesses. Eles proclamam publicamente o amor ao próximo, agindo, no entanto, como o "perito da lei" diante daquele que precisa de auxílio, o mesmo que inspirou Jesus na parábola do "Bom Samaritano". Em cada panfletagem, dizem estar comprometidos com a defesa da liberdade de expressão e do direito das pessoas de expressarem suas opiniões, mesmo que discordem delas. No entanto, possuem um talento incomum para destruir imagens de pessoas nos bastidores.
    Quando se trata da direita, nossas posições são tão opostas que considero estarmos em extremos opostos da vida, com perspectivas humanas divergentes. No entanto, aceito essas diferenças. Quanto à esquerda, vejo uma intolerância mais acentuada. Ao se considerar moralmente destinada a libertar os oprimidos, alguns se veem como agentes da história com o direito de eliminar vozes dissonantes, utilizando meios que não hesitam em silenciar. A queima de reputações nos bastidores parece ser uma prática constante. É surpreendente ver que, em nome de uma cruzada nobre, cometem os mesmos abusos e violências que condenavam na conduta da direita, transformando-se, de certa forma, em uma nova direita.
    Com suas ações, abriram espaço para que a direita conservadora encontrasse eco nas universidades. O Lumpemproletariado, "o trapo humano", ganha destaque em suas fileiras, enquanto os supostos bons guerreiros justificam sua presença guerreando com ineficiência, confusão e moral duvidosa, tudo em nome da eliminação daqueles que consideram distintos. Recordando um pouco do filme "Doutor Jivago", dirigido por David Lean (não o livro), alguns ingressam nessa seita como Pasha Strelnikov, imaginando-se líderes de um movimento que lida cruelmente com seus oponentes, condenando-os ao ostracismo acadêmico em vida. Entretanto, não percebem que estão mais próximos da conduta de Victor Komarovsky, representando a velha aristocracia epistêmica. Viva o personagem do filme "Doutor Jivago" – ele nos ensina muito sobre as teias das relações humanas e suas complexidades.
    Parabéns!

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  3. Bom comentário, professor Nilo. Estamos vivendo ditaduras camufladas em democracias , sejam de qualquer lado. A intolerância e o nivelamento dos indivíduos por baixo é notório. Vivemos de clichês e da destruição de toda e qualquer História.
    Pe
    Sar se tornou perigoso!

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