O Globo
Após décadas de mineração predatória, parte
da capital de Alagoas está afundando
Na primeira metade do século passado, o
escritor Graciliano Ramos arriscou uma explicação geográfica para o atraso
nacional. “Todo grande país tem um golfo. Olhe um mapa do Brasil: a costa é
quase toda lisa, com uma baía pequena aqui, outra ali. Golfo mesmo não tem”,
observou. Depois de expor a tese ao repórter Joel Silveira, o autor de “Vidas
Secas” propôs uma solução: arrasar seu estado natal, criando o Golfo das
Alagoas. “Aí, sim, o Brasil era capaz de ir em frente”, gracejou.
O velho Graça morreu há 70 anos, quando o subsolo de Maceió ainda permanecia intocado. Hoje sua piada parece uma profecia. Parte da capital alagoana está afundando, num desastre ambiental sem precedentes no país.
A terra começou a tremer em 2018, abrindo
rachaduras em ruas e casas do bairro Pinheiro. O Serviço Geológico do Brasil
concluiu que o fenômeno estava ligado à extração de sal-gema em minas
subterrâneas da Braskem.
A exploração foi suspensa, mas o solo
continuou a ceder, e cerca de 60 mil pessoas tiveram que ser removidas. No
último domingo, uma das minas entrou em colapso sob a Lagoa Mundaú. O
rompimento abriu uma cratera que ameaça crescer nos próximos meses e anos,
engolindo tudo o que havia à sua volta.
A ameaça de desmoronamento transformou 20% do
território de Maceió numa cidade fantasma. Esvaziou cinco bairros, condenou 18
escolas, interditou um hospital, um cemitério, um estádio de futebol e uma
linha de VLT.
O governo federal declarou estado de
emergência, mas o presidente Lula não quer visitar a capital antes de pacificar
a relação entre os grupos do senador Renan Calheiros e do deputado Arthur Lira.
Talvez seja mais fácil negociar a paz na Faixa de Gaza ou convencer a Venezuela
a desistir do petróleo do Essequibo.
Na quarta-feira, o Senado instalou uma CPI
proposta por Renan, aliado ao governador Paulo Dantas. Ele quer investigar o
acordo da Braskem com o prefeito João Henrique Caldas, afilhado de Lira. A
petroquímica acertou o repasse de R$ 1,7 bilhão ao município, que se
comprometeu a “nada mais reclamar ou cobrar”. As famílias que viviam na região
não foram ouvidas.
Especialistas afirmam que os poços foram
escavados sobre uma falha geológica, ignorando normas e limites de segurança.
Isso não teria ocorrido sem a omissão do poder público, que falhou no
licenciamento e na fiscalização ambiental.
Quem visita o site da Braskem aprende que a
empresa possui “compromisso com as pessoas e com o planeta”. Se não fosse o
rompimento da mina, a propaganda verde teria sido levada à COP28, em Dubai.
Em comunicados, a petroquímica diz que busca
reparar as vítimas “de maneira justa, no menor tempo possível”. No mundo real,
centenas de famílias reclamam que foram surpreendidas ao assinar os acordos.
Para serem indenizadas, tiveram que vender suas casas e memórias a preço de
banana.
Em meio à crise, o governador informou que deseja transformar a área num parque inspirado no Ibirapuera. Se o plano for adiante, os autores do crime ambiental arriscam lucrar pela terceira vez. Lucraram com a mineração predatória, lucraram com a compra dos terrenos e voltariam a lucrar com sua desapropriação. A não ser que a cratera cumpra a profecia de Graciliano, formando o Golfo da Braskem.
Excelente!
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