O Globo
Ficaram animais, alguma roupa antiga,
mensagens dizendo que o sal das lágrimas valia mais que o sal-gema
Maceió é hoje uma cidade singular. Na praia,
onde andam os turistas, há uma feérica decoração de Natal: árvores cobertas de
neve, renas, Papais Noéis de diferentes tamanhos. Do outro lado da cidade,
estão os bairros fantasmas que percorri durante alguns dias. Meu projeto de
reportagem foi inspirado num romance russo, em que aventureiros visitavam
bairros abandonados depois de uma invasão alienígena.
Quais eram os vestígios, os sinais das 60 mil
pessoas que abandonaram suas 14 mil casas porque o solo ameaça abrir, engolindo
todos?
Entre as inúmeras inscrições que colhi nos
muros, algumas poéticas, outras indignadas, esta parece sintetizar a história:
“Não era para ser assim”.
A história do desastre tem origem na década de 1970 e envolve personagens conhecidos do Brasil moderno, como a ditadura militar e a Odebrecht. Os militares decidiram abrir a região de Maceió para a prospecção de petróleo. O dono das máquinas de prospecção, um empresário baiano, constatou que havia muito sal-gema e decidiu abrir uma empresa para explorá-lo. A ditadura militar embarcou junto. Decidiram instalar a indústria química numa área povoada de grande valor ambiental: o Pontal da Barra, restinga onde o mar se encontra com a Lagoa de Mundaú.
Desde quando começaram a produzir cloro e
soda cáustica, houve 23 desastres. Um deles intoxicou 152 pessoas; outro acabou
contaminando o lençol freático de Marechal Deodoro, pequena cidade onde nasceu
o homem que proclamou a República.
Quem resistiria aos militares? O governo
estadual tinha uma intuição do perigo, tanto que produziu um histórico
documento de segurança. Histórico porque até hoje é estudado nas escolas. O
texto previa que, em caso de deslocamento de uma nuvem de cloro para o estádio
de futebol Rei Pelé, o locutor assumiria o microfone e diria para que todos
usassem o seu lenço e o molhassem para evitar os efeitos venenosos do cloro.
Como se a multidão levasse lenço aos estádios e houvesse água para todos num
mesmo momento.
Na década de 1980, houve o desastre de Bhopal
na Índia: 15
mil mortos, 300 mil intoxicados. Ainda assim, decidiram duplicar a fábrica no
Pontal da Barra. Chegaram a publicar um anúncio intitulado “Razão e
ignorância”, no antigo Jornal do Brasil, criticando o Partido Verde alemão por
exagerar o perigo da indústria química — que, por sinal, nasceu na Alemanha
hitlerista. Com a duplicação, cerca de 400 caminhões de salmoura circulavam
pela área urbana. A imensa exploração foi formando cavernas, houve tremores, as
casas racharam, e as pessoas foram progressivamente retiradas de suas casas.
Ficaram alguns animais, alguma roupa antiga,
mensagens afirmando que o sal das lágrimas valia mais que o sal-gema. As casas
passaram a ser da Braskem, que escreve um número em vermelho na fachada. O
número da besta, me disse o pastor Wellington Santos, cuja igreja batista
também foi interditada pela Defesa Civil.
A vegetação cresceu, as flores caíram nas
ruas, algumas paredes estão semidestruídas. Para demonstrar que estava noutro
planeta, consegui uma imagem que lembra isso: um reboco cinza na parede como se
fosse uma cabeça humana, com dois orifícios no lugar os olhos. Foi o primeiro
habitante desse novo planeta Braskem que documentei. Mas é um pouco também um
produto do Brasil.
Houve uma intensa luta ecológica por aqui, a
partir do Sindicato dos Jornalistas, que criou o Movimento pela Vida. Houve
batalhas parlamentares, uma CPI que a Odebrecht classificou como fruto do
exagero da imprensa.
No governo Collor, a área do Pontal da Barra
foi tombada. Mas as instalações seguem firmes por lá. O Brasil conviveu com
isso, com o argumento de que a indústria química salvaria Alagoas. Hoje, ela é
o grande obstáculo, projetando o grande desastre, para o próprio turismo e para
a pesca nas lagoas, que ocupam 45 mil pessoas.
Só usando o lenço. Não para neutralizar o
cloro, mas para enxugar nossas lágrimas.
Ainda bem que os moradores da Gruta do Padre,
olhando mais longe, processam a Braskem na Holanda, onde ela tem empresas. A
Justiça de lá aceitou a causa. Pelo menos, pode-se dizer, nesse caso, que o
buraco ainda é mais embaixo.
Cruzes!
ResponderExcluirBrilhante! Gabeira escreve com talento, sensibilidade e conhecimento! Poucos colunistas reúnem tantas condições e experiências.
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