terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Carlos Andreazza – Veneno

O Globo

STF transforma o exercício jornalístico em atividade de risco

O gênio não voltará mais à lâmpada. Está solto, para além da materialidade xandônica, à disposição do togado que o quiser incorporar, ratificado até pelos do “cala a boca já morreu”. Qual a surpresa — a defesa da democracia tendo produzido excessos autoritários — em o Supremo, tribunal das jurisprudências de areia, tomar decisão inconstitucional?

O STF a transformar o exercício jornalístico em atividade de risco, exposta a liberdade de imprensa à avaliação do juiz da esquina. A Corte, pois, descentralizando as possibilidades de arreganho. Um convite — não o primeiro — ao autoritarismo país adentro.

Não há outra definição a uma “tese” — chamaram de tese — que se fundamenta no conceito de “indício concreto”. A Corte constitucional, que deveria defender a estabilidade-previsibilidade nos usos da Lei, fundou a corresponsabilização de empresas jornalísticas pela publicação de entrevistas com “indícios concretos da falsidade da imputação”. (Houvesse esse recurso antes, talvez nem fosse preciso censurar a Crusoé.)

Eis a formulação-puxadinho do STF. Que estimula o jornalismo de gabinete, sem dúvida uma garantia, a ser praticado por meio do off oficial, não raro daquele que, imune a plantar falsas imputações em suas versões, afinal julgará a “falsidade da imputação”.

O tribunal terá agora de explicar o que significa a “tese”, já iniciada a campanha do “não é bem assim”. É, sim. Será penoso observar. Porque, até para as práticas processuais do Judiciário, ou é indício ou é concreto. Se a imprensa não puder trabalhar com a categoria “indícios” para suas apurações, equivalerá a exigir mais do jornalismo que do sistema judicial.

Já existem mecanismos funcionais de responsabilização para casos de veiculação de conteúdos comprovadamente caluniosos etc. O que o Supremo produziu, sob argumentação vaga, foi a fixação de diretriz aberta, de natureza cerceadora, que plantará prevenções a uma atividade que opera no campo da controvérsia. Sob repercussão geral, para aplicação também em primeira instância, lançou as condições à censura prévia derivada da autocensura.

O STF baixou a “tese”, sentiu a reação da sociedade — e então correu o ministro Barroso a esclarecer informalmente (evidência de decisão opaca) que o estabelecido seria somente para ocorrências de exceção, veiculações sob má-fé ou com “abuso de negligência”; omitido que, na hipótese de que houvesse algum, no mais das vezes não seria o bom senso do STF a julgar as denúncias contra o jornalismo.

Não há bom senso.

Sendo a “tese” para casos excepcionais, e sendo excepcional o próprio caso suscitador do julgamento, prudente seria que o tribunal — sem fixar norte para repercussão geral — apenas julgasse os casos quando concretamente surgissem. Caso a caso.

Não há prudência.

Aberta a porteira, quão arrombada poderá ser a interpretação jurídica — contra jornalistas que incomodem julgadores, amigos de julgadores e um ou outro “amigo do amigo do meu pai” — de “indício concreto de falsidade”?

Não há prudência, prevalecente a Corte constitucional que aterrou o comedimento, aterrada também a poesia outrora erguida contra a censura prévia no Brasil. Não se chegou até aqui sem contribuições variadas desde o Supremo, a partir do espírito diretor dos inquéritos infinitos e onipresentes de Alexandre de Moraes.

E então — para iluminar — Cármen Lúcia. Que, em 20 de outubro de 2022, votou — enquanto dizia que “não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento” — pela censura prévia. Julgava-se, no TSE, a suspensão da exibição de um documentário bolsonarista. Ela apoiou.

— Este é um caso específico e que estamos na iminência de termos o segundo turno das eleições. A proposta é a inibição até o dia 31 de outubro, exatamente o dia subsequente ao do segundo turno, para que não haja o comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo eleitoral e dos direitos do eleitor.

Censura — chamou de “inibição” — com data para acabar.

— Medidas como essas, mesmo que em face de liminar, precisam ser tomadas como se fosse algo que pode ser veneno ou remédio.

Veneno ou remédio?

— Se, de qualquer forma, senhor presidente, isto se comprovar como desbordando para uma censura, deve ser imediatamente reformulada esta decisão no sentido de se acatar integralmente a Constituição e a garantia da liberdade.

Chancelava-se a censura preocupando-se com a produção de censura pelo ato de censurar. Com a advertência, por ministra de tribunal constitucional, de que, se a censura gerasse censura, rapidamente se corresse — admitido o meio acatamento à Constituição — para respeitar a Constituição.

Não se chegou até aqui de repente.

 

 

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