Folha de S. Paulo
Decisão de Francisco ajuda a tirar o alvo da
testa de casais homossexuais
O papa
Francisco autorizou sacerdotes católicos a abençoarem casais homossexuais.
Para o Estado laico, o respeito à liberdade
individual é mais do que suficiente para garantir aos LGBTs o direito à
igualdade matrimonial civil. Além disso, a bênção aprovada pelo papa não
equivale ao casamento,
que continua a ser um sacramento celebrado entre homens e mulheres.
Por outro lado, os LGBT católicos
ficaram felizes com a notícia. No fundo, passaram a ter mais ou menos, digamos,
o mesmo status dos casais heterossexuais formados por divorciados. Também a
eles o papa autorizou que se abençoe.
Nos dois casos, a situação é vista como irregular pelo catolicismo. Mas se os cristãos só condenarem os LGBTs na mesma proporção que condenam divorciados que se casaram de novo, como Jair Bolsonaro, será um progresso. O papa ajudou a apagar o alvo que o conservadorismo contemporâneo desenhou na testa dos LGBTs.
Afinal, a atenção dada pelo movimento
conservador moderno à questão LGBT é completamente desproporcional à
importância que o tema recebe na Bíblia.
A homossexualidade masculina é claramente
condenada em Levítico 18:22 e 20:13. O Levítico, entretanto, também autoriza a
escravidão de não israelitas (25:44) e estabelece diversas normas que nenhum
cristão, por mais conservador que seja, defende hoje em dia. Em 25:36, o
Levítico proíbe a cobrança de juros. Alguma dessas igrejas que perseguem LGBTs
se abstém de investir em renda fixa?
Há outras referências, ou possíveis
referências, à homossexualidade no texto bíblico, mas autores como John Corvino
(What´s Wrong with Homossexuality?", Oxford University Press, 2013) têm
dúvidas se elas se referem à homossexualidade geral, a práticas como a
prostituição homossexual, ou, como no caso de Sodoma (Gênesis 19: 5), à prática
de estupro coletivo contra homens estrangeiros como forma de reforçar seu
status de inferioridade (também presente nos episódios narrados em Juízes, 19).
Sobre a punição a Sodoma, a propósito,
Ezequiel 16:49 nos informa que "esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã:
soberba, fartura de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas
nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado".
Ou seja, quem votou contra taxar fundos
exclusivos tem mais direito de ser chamado de "sodomita" do que os
LGBTs.
Não há nada sobre os LGBTs no Evangelho.
No mínimo, a Bíblia não autoriza considerar a
homossexualidade pior do que inúmeros outros pecados de origem sexual incluídos
no texto bíblico, como a incomparavelmente mais comum infidelidade
heterossexual.
Políticos preferem perseguir os LGBTs em vez
dos adúlteros por uma simples questão numérica. Adúlteros são uma parte grande
do eleitorado. Condená-los com muita ênfase custaria muitos votos. Os LGBTs,
por outro lado, são uma minoria muito pequena. Por isso, condenar os
homossexuais oferece à maioria heterossexual a oportunidade de posar de
puritano com o desejo dos outros. Isso dá voto.
A decisão do papa, portanto, pode não ser
tudo que católicos de esquerda como eu (para não falar nos LGBTs) queriam. A
Igreja move-se lentamente e, movendo-se lentamente, atravessou milênios.
Mas o papa ajudou a tirar um pouco do chão
sob os pés de gente ruim que usa a fé cristã para ganhar dinheiro, conquistar
poder, explorar os piores sentimentos do eleitorado e perseguir minorias.
Exatamente.
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