sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

César Felício - Milei começa sua aposta no tudo ou nada

Valor Econômico

Posse de argentino terá Jair Bolsonaro

Fantasmas assombram a Argentina às vésperas da posse do economista de extrema-direita Javier Milei como presidente do país, neste domingo. A posse será uma festa global de protagonistas da degradação da democracia, no passado ou no presente, possivelmente no futuro também, na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro liderará grande comitiva. Mas não é a ameaça autoritária que está no horizonte argentino, longe disso.

A crise fiscal, cambial e inflacionária da Argentina foi muito mais decisiva para a eleição de Milei do que qualquer guerra cultural de estilo bolsonarista, e a agenda econômica deve ocupar todos os espaços do novo governo. É um economista no poder, não um ex-capitão do Exército, por mais que tenha mimetizado estratégias eleitorais do ex-presidente brasileiro. Milei já deu sinais de que escolheu as brigas em que quer entrar. A destruição da institucionalidade não parece ser uma delas. Montou uma equipe de governo alinhada ao establishment, algo que Bolsonaro tardou a fazer

Ele partirá para um tudo ou nada para tentar um ajuste da economia argentina, de preferência com o desmonte do Estado. Difícil que sobre espaço para outra coisa em sua agenda.

É possível que haja algum grau de despiste. O tom belicoso de seus pronunciamentos contra “a casta” e a esquerda deve permanecer. Quebrando uma tradição das posses argentinas, ele fará neste domingo dois discursos: um breve, na posse formal, diante do Congresso, o que sempre houve, e outro inovador, para seu eleitorado, das escadarias da sede do Legislativo. Cenário perfeito para a radicalização, mas a distância entre intenção e gesto deve ser relevante.

A imprensa argentina dá como certa a terapia de choque e prevê um pacote já para essa segunda-feira. Virá por meio do que chamam de “lei ônibus”: uma proposta legislativa única, com diversas iniciativas para sacudir o país.

Há ao menos dois espectros que rondam o cenário: um é o de Celestino Rodrigo, ministro da Economia durante o governo de Isabelita Peron, que baixou um pacote apelidado de “rodrigazo”, em 1975. O outro é o de Erman González, ministro que no governo Menem lançou o Plano Bonex, em 1990. Dois episódios traumáticos, em governos peronistas. Não se acredita que haverá reprise desses fracassos, mas teme-se o uso como referência.

O cenário de um novo “rodrigazo” é mais amplamente discutido. O ministro de Isabelita tinha como prioridade reduzir de forma abrupta o déficit fiscal, meta que também é anunciada atualmente por Milei. O déficit fiscal da Argentina em 1975 oscilava em torno de 14% do PIB, hoje algumas estimativas falam em 15%. Da noite para o dia, Rodrigo anunciou o corte de subsídios, uma maxidesvalorização cambial e o reajuste imediato de tarifas públicas que estavam muito desalinhadas. “Amanhã me matam ou as coisas começam a funcionar”, disse o ministro na ocasião. O plano acelerou a inflação no País, desatou uma onda de insatisfação social e ajudou a derrubar o governo de Isabelita, deposta menos de um ano depois por um golpe militar.

Em janeiro de 1990, o objetivo central de Antonio Erman González era enxugar a liquidez para deter a inflação, outra preocupação central de Milei, já que a dolarização que preconizou durante a campanha parece descartada. Ele então fez um alongamento compulsório de títulos públicos que venciam a curto prazo, por meio de um papel chamado Bonex, com resgate em dez anos. Foi algo que antecipou, de certo modo, o que Collor fez no Brasil com o plano batizado com seu nome dois meses depois.

Milei já se mostrou apreensivo com o giro de uma dívida de curto prazo tomada pelo Banco Central, representada por um papel chamado “Leliq” (Letras de Liquidação). A autoridade monetária argentina vende papéis com vencimento de 28 dias a uma taxa de juros altíssima ao sistema financeiro.

Se os últimos dias demonstraram algo sobre Milei, contudo, é que o presidente eleito da Argentina pode dizer que se comunica com espíritos de cachorros, mas de louco não tem nada. Bancou uma aposta alta, confiante que o mandato popular que recebeu poderá atenuar o Congresso a sua falta de maioria parlamentar.

Em um surpreendente movimento, costurou um acordo com os aliados da ex-presidente Cristina Kirchner no Congresso e emplacou essa quinta-feira como presidente da Câmara um dos 38 deputados de seu partido, em um conjunto de 257 parlamentares. O deputado é Martin Menem, sobrinho do antigo presidente Carlos Menem (1930-2021).

Com essa manobra, colocou limite no avanço do ex-presidente Mauricio Macri como avalista da governabilidade. A imprensa argentina noticia que o ex-presidente queria eleger Cristian Ritondo, o líder parlamentar de seu grupo político. As chances de Ritondo negociar a formação um bloco de maioria eram maiores, mas Milei ficaria mais dependente de Macri.

Com o sobrinho de Menem no comando, Milei opta por ser um presidente minoritário, que necessitará de acordos pontuais para governar, mas tendo margem para buscar tanto o macrismo quanto o peronismo, conforme a necessidade.

Como Cristina já sinalizou que pretende ficar com o comando da oposição, trata-se de uma estratégia política arriscada: Milei pode se isolar e a oposição peronista forjar uma aliança que vá além de suas próprias forças. O presidente eleito da Argentina pode ter sido imprudente e cometido um erro, mas esse erro tem a sua lógica.

 

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