segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Denis Lerrer Rosenfield - Marx e os identitários

O Estado de S. Paulo

Vivemos a passagem do conhecimento iluminista, ocidental, para a ignorância e, posteriormente, a barbárie

Marx era herdeiro da Aufklärung, do Iluminismo, posicionando-se como uma espécie de culminação de uma certa tradição ocidental, enraizada na ideia da igualdade. Nesse sentido, pode-se dizer que foi discípulo de Rousseau, compartilhando com ele a mesma aversão à propriedade privada, tida por causa da desigualdade social. A partir daí, desenvolveria toda uma teoria de destruição do capitalismo, que obedeceria a uma lógica interna de autodissolução, criando uma classe encarregada da redenção da humanidade, o proletariado.

Note-se que sua postura era a de um intelectual imbuído não apenas de uma missão política, mas voltado para o diagnóstico do regime capitalista de produção e de suas contradições. Sua obra propriamente teórica, nas áreas da Filosofia e da Economia, caracteriza-se pelo estudo e pela pesquisa, sempre testando suas ideias. Que o marxismo tenha se tornado dogmático graças ao controle comunista não significa que teria compartilhado deste novo posicionamento. Mesmo seu grande amigo, Engels, e um jovem alemão, Eduard Bernstein, teórico da social-democracia, chegaram a entrever que o capitalismo não se autodestruiria, mas iria se renovando.

Frise-se que Marx era um homem da Filosofia e da Economia política, um homem do conhecimento, em nada comparável a seus êmulos posteriores. Formou-se na filosofia de Hegel, ele mesmo um homem da Aufklärung, referindo-se a esse filósofo em vários momentos de sua obra. Não contente com a Filosofia, enveredou para o estudo da Economia política clássica, visando a um maior conhecimento da nova sociedade que então se desenvolvia. A primeira seção de O Capital, a do “fetichismo da mercadoria”, é de um virtuosismo ímpar na conjunção entre a lógica de Hegel e a economia política, sobretudo David Ricardo. Marx era um homem do conhecimento numa perspectiva evidentemente universal.

Tal não é hoje a perspectiva da esquerda identitária, voltada para particularidades excludentes, tipo homem x mulher, heterossexuais x homossexuais, opressores x oprimidos, negros x brancos e assim indefinidamente. Observe-se que são particularidades que procuram se afirmar em detrimento da alteridade, no apagamento do outro, como se só elas tivessem um valor absoluto. O conhecimento desaparece, visto que em seu lugar surgem a cor da pele, o gênero ou a orientação sexual, como tão bem analisou Antonio Risério.

A superfície, o aparente, toma o lugar da ciência. Logo não há mais, propriamente ditos, argumentos, confronto de ideias, mas meras opiniões superficiais. Ou seja, a esquerda identitária é avessa ao conhecimento, contentando-se com palavreados amplificados ao sabor de influencers e universidades, que abandonam o seu papel histórico de lugares do saber. Observe-se o seu poder em universidades americanas de elite, que lá fizeram imperar o politicamente correto, sendo um de seus frutos o antissemitismo. Em vez da atitude iluminista de Marx, temos o obscurantismo e a afirmação de particularidades como se fossem fontes de conhecimento. É a derrocada mesmo dos valores ocidentais, seja no conhecimento, seja na moral, seja na religião, seja na ciência. E patrocinada, paradoxalmente, por universidades – inclusive entre nós, ao se tornarem “colonizadas”.

Não deveria, portanto, surpreender que esta mesma esquerda tenha derrapado para a barbárie ao tornar o Hamas líder de uma luta “decolonial”, como se fosse a vanguarda do combate contra o Ocidente. Seriam os terroristas os portavozes desta nova libertação mundial, com a especificidade de que essa particularidade política não tem nada de universal, ao recusar todos os valores da civilização judaico-cristã.

Os judeus são o alvo prioritário; os próximos, já na fila de espera, serão católicos, protestantes, evangélicos em suas distintas correntes. É flagrante a contradição não somente no que diz respeito às formulações marxistas, mas também aos princípios da política identitária. Pregam eles a dominação global do islamismo, com a eliminação de outras religiões, a subjugação das mulheres, a mutilação sexual destas em algumas regiões e a educação das crianças para a cultura do ódio e da morte para todo aquele que deles discordarem.

Compreende-se melhor o silêncio, para lá de constrangedor, desta esquerda no que tange aos ataques sistemáticos da Turquia contra as populações curdas, com bombardeio de vilarejos no Iraque, além de, no passado, ter usado tanques com o mesmo objetivo nesse país e na Síria. Só nos dois últimos meses foram três bombardeios. Algum protesto? A Ucrânia foi violentamente invadida pela Rússia amparada em sua ideologia nacionalista imperial, tendo uma parte de seu território subtraída de sua soberania. Algum protesto? Nos últimos dias, a ditadura esquerdista venezuelana explicita seus planos de invadir e anexar uma parte da Guiana, num flagrante desrespeito à ordem internacional. Algum protesto?

É a passagem do conhecimento iluminista, ocidental, para a ignorância e, posteriormente, a barbárie.

*Professor de Filosofia na Ufrgs

6 comentários:

  1. O filósofo bolsonarista escreve sobre o que não gosta, e portanto escreve CONTRA. Certamente não é uma análise isenta e nem objetiva. Há pouco mais de 5 anos ele nos escrevia sobre o que gostava, sobre o que acreditava, escrevia A FAVOR. A favor do liberalismo da Nova Direita e de sua esperança na candidatura Bolsonaro e seus apoiadores, entre os quais o PRÓPRIO COLUNISTA! Também escrevia sobre as ameaças à Democracia, que ele afirmava partirem do PT e da Esquerda. Vimos ao longo dos 4 anos do DESgoverno Bolsonaro a série ininterrupta de ataques à Democracia e às instituições feitos pelo governo apoiado por este colunista. Aqui neste mesmo blog, em 15/10/2018 e 29/10/2018, sua "análise" DETURPADA e IDEOLÓGICA era muito similar às deste ano. Há alguns meses, negou aqui que os atos antidemocráticos de 8/1 fossem tentativa de golpe...

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  2. Perfeito. Já Daniel continua sendo o que sempre é, aqui, um jumento petralha, que não deixa de ser um tipo de identitarismo. MAM

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  3. Meus argumentos estão aí, pra quem tiver interesse. Do Marcos (MAM?), só temos a sua habitual FALTA DE EDUCAÇÃO, frequentemente demonstrada por aqui!

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  4. Incapaz de mostrar as virtudes do que acredita (neoliberalismo, Direita, etc.), o colunista constantemente ataca e critica aspectos da Esquerda, do PT e de outros grupos contrários ao seu pensamento. Às vezes com algum sentido, outras vezes, como aqui, de forma descabida e tendenciosa, distorcendo fatos e ideias. Evidentemente terá apoio dos fascistoides e radicais de direita que compartilham seus pseudovalores.
    Entende-se também seu silêncio e dos leitores que compartilham as mesmas ideias sobre as MAIS DE 20 MIL VIDAS PALESTINAS ASSASSINADAS pelos militares israelenses, e as tortuosas maneiras de evitar tal informação ou de analisá-la mais corretamente. Na incapacidade de justificar tal MASSACRE DE CIVIS na "ÚNICA DEMOCRACIA DA REGIÃO", atacam quem denuncia ou critica estes CRIMES DE GUERRA, enquanto são cúmplices das barbaridades do ultradireitista Netanyahu, "cumpanhero" de ideologia.

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  5. O que o colunista chama de particularidades excludentes, "tipo homem x mulher, heterossexuais x homossexuais, opressores x oprimidos, negros x brancos", são parte da nossa realidade e sujeitas a qualquer análise científica ou filosófica ou histórica ou política, ao contrário do que quer o filósofo bolsonarista. São assuntos que têm trazido novas informações e novos valores pra nossa sociedade, obviamente CONTRARIANDO os interesses do colunista, o que o leva a criticar quem discute e/ou valoriza tais temas.
    As particularidades são, FILOSOFICAMENTE FALANDO, tão importantes e válidas, como objeto de análise, quanto qualquer suposta generalidade ou tentativa de encontrar ou discutir alguma destas. A própria Filosofia se desenvolveu e cresceu analisando e valorizando as PARTICULARIDADES, que o colunista aqui tanto despreza e critica.

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