O Globo
Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros
Não é que falte assunto de relevo neste final
de ano — a Humanidade, mais uma vez, não caminhou rumo ao que dela era
esperado. Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul
flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros,
estreitado nossa interdependência como passageiros de um mesmo mundo,
confirmado a relação paradoxal entre distância espacial e proximidade
emocional. Não foi bem isso que ocorreu em 2023. Mas é justamente em período de
início de férias, com festejos a todo vapor e desatenção geral típica de
véspera de Natal, que devaneios são permitidos — ótima oportunidade para poder
divagar sobre algo impalpável, evanescente e atemporal, apenas bonito: a cor
azul e nossos estados d’alma.
Wassily Kandinsky, William Gass (“On being blue”), Carl Sagan, Goethe, Maggie Nelson (“The colour blue as a lens on memory and loneliness...”), Maria Popova e Leonardo da Vinci são apenas alguns dos pintores e naturalistas, escritores, pensadores ou poetas que se debruçaram sobre essa que é chamada de “a cor da mente emprestada ao corpo, a cor da consciência quando a acariciamos”. Para a ensaísta americana Rebecca Solnit, autora de uma elegante reflexão sobre como encontrar a si mesmo no desconhecido (“Um guia para se perder”, Martins Fontes, 2022), a relação entre o azul, a melancolia e a solidão humanas está por toda parte onde há distância e desejo.
Percebido como azul nas suas bordas e
profundezas quando observado no espaço sideral, nosso planetinha vai perdendo
sua luz à medida que nos aproximamos dele. A cor dispersa-se entre as moléculas
do ar, dispersa-se na água (incolor só quando rasa, azul quando o mar é
profundo), dispersa-se no céu e na terra. “Há muitos anos que me emociono com o
azul que está no limite do que se vê, aquela cor dos horizontes, das cadeias de
montanhas remotas, de tudo o que está longe. A cor dessa distância é a cor de
uma emoção, a cor da solidão e do desejo, a cor de lá visto daqui, a cor de
onde você não está. É a cor de onde você nunca poderá ir. Pois o azul não está
no lugar a quilômetros de distância no horizonte, mas na distância atmosférica
entre você e as montanhas”, escreveu Solnit para relacionar desejo e distância.
Tratamos o desejo como um problema a resolver, enquanto o que intriga a autora
é algo distinto: e se, com um ligeiro ajuste de perspectiva, o desejo pudesse
ser apreciado como uma sensação em seus próprios termos? Se conseguíssemos
olhar para longe sem querer diminuir a distância, talvez pudéssemos dar conta
de nossos desejos da mesma forma como amamos a beleza de um azul que nunca
poderá ser alcançado. “Algo desse anseio será apenas realocado pela proximidade,
jamais apaziguado, assim como as montanhas deixam de ser azuis quando chegamos
perto delas. O azul tingirá algum outro além. E nisso reside o mistério de por
que as tragédias são sempre mais belas que as comédias e de por que temos tanto
prazer na tristeza de certas canções e histórias. Algo estará sempre fora do
nosso alcance”, teoriza Solnit.
No mundo das espécies que vivem abaixo de
nossa atmosfera avermelhada, o azul é raridade, assim como é inexistente um
pigmento natural dessa cor. Como não se surpreender com a escassez de alimentos
azuis produzidos pela terra, quando abundam os vermelhos, amarelos, marrons ou
verdejantes? Poucas são, também, as plantas que florescem em azul. E os raros
pássaros e borboletas dotados de plumagem azulada devem esse privilégio a uma
singular refração da luz em suas penas, de forma a cancelar qualquer raio que não
seja azul. Amamos contemplar o azul não porque ele vem até nós, mas porque ele
nos leva longe, já observara Goethe em sua teoria de cor e emoção. Clarice
Lispector concordaria. “O azul será uma cor em si, ou uma questão de distância?
Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul”, escreveu
ela.
Se somos tantos a amar o azul, vale tentar o
inalcançável — 2024 vem a galope.
Pois é.
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