O Estado de S. Paulo
O que há de socialismo no mundo, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política. Reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões
O dito segundo o qual todas as épocas estão a
igual distância de Deus muito provavelmente já não nos serve pelo menos desde
que se abriu a era atômica. Em linguagem secular, a ser verdade o dito, os
tempos valem uns pelos outros, os males são aproximadamente os mesmos, as
atribulações humanas essencialmente não se alteram – e beiram o absurdo. A
partir de Hiroshima e Nagasaki, no entanto, passamos a carregar um peso
infinitamente maior derivado da possibilidade de autodestruição do planeta e da
espécie. E, agora, a aceleração vertiginosa inerente à condição pós-moderna, ou
hipermoderna, acena para o fato de que a cada dia nos tornamos ainda mais
perigosos para nós mesmos. Estaremos, pois, a uma distância maior de Deus.
Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.
Por certo, as sociais-democracias clássicas,
ainda em vida dos pais fundadores – Karl Marx e Friedrich Engels –,
contribuíram para tornar mais complexa a vida política das sociedades em que
atuaram, mas àquelas forças de vanguarda faltou a plena consciência do que
faziam. Trouxeram os subalternos para a esfera pública, ajudaram a configurar a
nova subjetividade de massas e a integrá-la socialmente, mas, ao mesmo tempo, o
mito persistente da revolução proletária fazia o papel de uma bola de chumbo
atada aos pés.
É que os operários industriais nunca foram a
maioria da população, como em algum momento se esperava que fossem. O movimento
socialista, no seu todo, revestiu o mundo do trabalho de uma inédita dignidade,
mas os operários, como tais, mesmo civilizando com lutas e sacrifícios a
sociedade do capital, não podiam ser uma classe dotada de universalidade. E por
um motivo simples: classes e partidos são intrinsecamente realidades parciais e
não portam em si a redenção humana.
Deixemos de lado o marxismo tornado ideologia
de Estado nos países que, entre 1917 e 1989, constituíram o “socialismo real”.
Seu valor teórico é irrelevante ou, para falar a verdade, inexistente.
Descrevendo uma realidade peculiaríssima, em que católicos e socialistas
(comunistas), religiosos e leigos se entenderam e desentenderam por décadas, o
filósofo italiano Giuseppe Vacca tem apontado outro déficit da explicação
marxista do mundo moderno. No segundo pós-guerra, só e unicamente na tradição
da esquerda do seu país é que teria emergido a consciência embrionária, mas
explosiva, da subestimação do fenômeno religioso. Esta consciência, presente
destacadamente em Palmiro Togliatti, dirigente histórico do Partido Comunista
Italiano e protagonista do “diálogo” estimulado pelo Concílio Vaticano 2.º,
traria consigo a exigência de uma refundação radical do marxismo, até hoje por
fazer.
Ao contrário do que supuseram os pais
fundadores, nenhuma reconciliação harmoniosa dos homens, entre si e com a
natureza, teria o condão de suprimir não só o comportamento religioso, como
também, por óbvio, o limite da existência humana. Este limite, de resto, está
na base de tal comportamento e, mais em geral, de toda inquietação humana,
filosófica ou não. Em outras palavras, as religiões são uma constante
antropológica, não uma forma transitória de alienação; uma objetivação
essencial, não um acidente histórico circunscrito às sociedades de classe.
Para Togliatti, a cegueira do marxismo – da
maior parte do imenso e contraditório corpus teórico que esta expressão recobre
– decorre de uma assimilação apressada do iluminismo do século 18 e do
materialismo do século 19, com suas respostas unívocas e, por isso, falsas para
o problema do sentido, ou sentidos, da vida. Aqui, as respostas só podem ser
múltiplas e diversificadas, desafiando-se naturalmente umas às outras. E a
verdade está rigorosamente entre os homens – e com ninguém em particular, seja
crente ou não.
Se isso for razoável, então o que há de
socialismo no mundo – a social-democracia, o socialismo liberal, o trabalhismo,
etc. –, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia
política (que só os radicais chamam de “burguesa”). Trata-se também de evitar a
armadilha estendida pelo “paradigma tecnocrático” – termo de uma recente
exortação do papa Francisco para indicar uma democracia sem raízes entre os “de
baixo” – e reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de
todas as religiões. Valores cuja vitalidade se acentua ainda mais nesta época
do ano, propícia à generosidade e à fraternidade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores
das Obras de Gramsci no Brasil
Passando para desejar um excelente Natal a todos. Especialmente ao Gilvan ( que gostaria de cumprimentar pessoalmente ), por nos proporcionar o imenso prazer de usufruir da riqueza deste blog.
ResponderExcluirObrigado, mesmo!