O Globo
É anacrônica a pretensão descabida de medir o
passado com a régua dos nossos dias, de vigiar e punir retroativamente
No ângulo mais nobre da Central do Brasil, há
uma figura em bronze de autoria de Rodolfo Bernardelli, um dos maiores
escultores do país. O homenageado é Cristiano Otoni, responsável pela primeira
ferrovia brasileira.
Despeça-se dela — da estátua, não do que
restou da nossa malha ferroviária. Em breve, ela pode ter o mesmo destino do
busto do Padre Antônio Vieira (por enquanto na PUC) e de uma centena de outras
obras de arte.
Sim, o “pai das estradas de ferro” e o “imperador da língua portuguesa” estão para ser apeados de seus pedestais. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibiu “manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista”.
O projeto, de vereadores do PSOL, é bem
parecido ao de parlamentares do PSOL e do PCdoB que
tramita na Câmara dos Deputados e prevê impor o mesmo em nível nacional —
substituindo os proscritos por “personagens históricos negros ou indígenas,
escolhidos democraticamente e conforme a pluralidade, a heterogeneidade, a
representatividade e a paridade de gênero”.
(Será que vão retirar as estátuas de Getúlio
Vargas, Luís Carlos Prestes e o monumento a Marighella? O respeito aos
direitos humanos e à democracia passava longe...)
O mais grave das leis propostas pelos zelosos
progressistas é seu anacronismo: a pretensão descabida de medir o passado com a
régua dos nossos dias, de vigiar e punir retroativamente.
Cristiano Otoni não era um escravocrata, mas
acreditava que a escravidão haveria de desaparecer naturalmente, sem
necessidade de leis que interferissem nos “direitos” dos senhores. Um homem do
seu tempo, que acharia normal o voto ser privilégio masculino, a palmatória um
recurso pedagógico e que se comesse papagaio flambado, arara assada e guisado
de jacu — até porque nada disso era crime.
Se um dia houver uma bancada vegana com a
mesma sanha, pode ser que mandem banir da paisagem as estátuas equestres e os
carnívoros de mármore ou metal. Como Tom Jobim, que hoje carrega seu violão, em
Ipanema, num doce balanço a caminho do bar — e da churrascaria, conivente com o
massacre de seres sencientes para a obtenção de picanha, linguiça e torresmo.
Se fez boa música, pouco importará.
Talvez os antitabagistas do futuro proíbam
tributo a fumantes — e o Leme dirá adeus a Clarice Lispector, e a Vila a Noel
Rosa (se não arrancarem também suas canções, que ecoam em pedra portuguesa sob
os pés de quem flana pelo Boulevard Vinte e Oito de Setembro).
Millôr deixará para sempre o pôr do sol do
Arpoador, e Vinícius de Moraes as tardes em Itapuã — é só voltar a Lei Seca e
vetarem homenagens a quem apreciava um uísque.
Melhor se as futuras estátuas não forem de
bronze ou ferro fundido, mas de gelo. Com os valores mudando cada vez mais
rapidamente — e, com eles, a fúria de reescrever a História —, o que era sólido
ontem já estará derretido no dia seguinte, dispensando leis, guindastes ou
exílio nos porões. Para gáudio dos progressistas, o passado nunca terá
existido.
O homem é o reflexo do seu tempo.
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