O Globo
Estimado presidente,
Saindo da ópera, encontrei D. Pedro II, e ele
contou-me que o senhor está nas minhas terras da Restinga da Marambaia e lá
pretende passar a noite do fim de ano. O monarca lhe quer bem, mas insiste em
provar que os republicanos são uns doidos. “Só malucos passariam a festa num
dos seus viveiros de negros novos, e este não é o primeiro”, disse-me o
Imperador.
Releve a má vontade de D. Pedro com a
República, mas ele tem alguma razão, e escrevo-lhe para minorar o desconforto.
(Ele não perdia a leitura dos jornais durante a pandemia, mostrando a todos a
conduta do seu antecessor.)
Sou um patriota, no dia 7 de setembro de 1822
eu estava na guarda de D. Pedro I na cena do Grito do Ipiranga. Comprei toda a
Restinga da Marambaia em 1847. Eu e meu irmão tínhamos fazendas de café e
milhares de escravos. Usávamos o trapiche da Marambaia para receber os
africanos novos.
De 1837 a 1852, desembarquei mais de 4 mil
negros na Marambaia, e continuamos a fazê-lo depois de 1850, quando um governo
poltrão cedeu aos ingleses e proibiu a importação de africanos. Como a
fiscalização atrapalhava meu negócio, em fevereiro de 1852, adverti:
— Se isto continua, a vida e fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império, correm iminente perigo.
Anos depois, meu irmão José também avisou:
— A continuar a pôr em muito risco nossa
segurança, abalará nossas fortunas e pode acarretar para o país funestas
consequências.
Éramos parte de uma elite próspera e nobre.
Das minhas terras, saía 1,5% das nossas exportações de café. O sábio suíço
Louis Agassiz maravilhou-se numa de nossas fazendas. Minha neta casou-se com o
filho de Montholon, o general que acompanhou o Imperador Napoleão para o
inferno da Ilha de Santa Helena. Quando não nos casávamos na nobreza, casávamos
com parentes. Eu era tio da minha mulher, irmão da minha sogra e cunhado do meu
sogro.
Nossas profecias realizaram-se. Os
filantropos do abolicionismo prevaleceram, a família imperial foi desterrada e
a fortuna dos Breves sangrou. No século XX, o Vítor, um de nossos descendentes,
era chefe político em Mangaratiba, mas vivia de um bananal e uma usina térmica.
Produzia uma ótima bananada, a Tita. Tivemos parentes ilustres, mas viramos pó.
Usufrua a beleza da Marambaia e esqueça os
Breves, mas lembre que não passa pela cabeça de um presidente norte-americano
hospedar-se numa propriedade que foi viveiro de africanos escravizados. Assim
somos nós. Como lembrou o doutor Pedro Malan (um remoto Breves), “no Brasil até
o passado é incerto”.
Peço-lhe a graça de lembrar-se desse tempo,
conversando com alguns quilombolas que vivem na região. Peço-lhe isso porque,
daqui de onde estou, incomoda-me que se faça de conta que a Marambaia é um
paraíso, fingindo que meu viveiro de negros escravizados é parte da História de
um outro mundo. Perto do viveiro, em Angra dos Reis, está o quilombo do Bracuí,
que leva o nome de uma fazenda para onde meu irmão levava negros desembarcados.
Ouça sua gente.
Do seu criado,
Joaquim José de Souza Breves
De breves estadias neste mundo que não é dos breves ...
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