O Estado de S. Paulo
Em 2024, a política polarizada dos EUA pode moldar o mundo para próximas décadas
O ano de 2023 acabou testemunhando uma
mudança na ordem mundial. O sistema internacional com base em regras construído
pelos EUA e outros países ao longo de décadas está sob ameaça em três regiões.
Na Europa, a guerra da Rússia na Ucrânia
arrebenta a antiga norma de que fronteiras não devem ser alteradas pela força.
No Oriente Médio, a guerra entre Israel e Hamas ameaça uma perigosa
radicalização da região, com milícias apoiadas pelo Irã combatendo aliados
apoiados pelos EUA, do Líbano ao Iêmen, do Iraque à Síria. E na Ásia, a
ascensão da China continua a desestabilizar o equilíbrio de poder.
Todos esses desafios possuem peculiaridades, mas têm em comum a necessidade de uma combinação sofisticada entre dissuasão e diplomacia. O governo de Joe Biden os tem enfrentado energeticamente – estabelecendo agendas, reunindo aliados e conversando com adversários. O sucesso dependerá de sua capacidade de executar as políticas que adotou. Lamentavelmente, isso poderá depender da política doméstica dos EUA, mais que de suas estratégias maiores.
GUERRA. Na Europa, Washington enfatizou o
combate à agressão russa; o que é mais fácil falar do que fazer. A Rússia tem
uma economia que era nove vezes maior que a ucraniana antes da guerra e uma
população quatro vezes maior. Esse desequilíbrio só pode ser resolvido por meio
de uma ajuda contínua e em grande escala para a Ucrânia, aliada a uma pressão
para que os ucranianos desenvolvam uma estratégia militar mais administrável e
reformem sua política e sua economia para se tornarem genuinamente parte do Ocidente.
No Oriente Médio, o desafio reside mais no
campo da diplomacia do que na dissuasão. Israel tem um poder esmagador em
comparação com o Hamas. Mas, para deixar o Estado de Israel mais seguro, com
novas alianças significativas com os países árabes do Golfo, os EUA devem fazer
Israel enfrentar uma realidade inevitável: cerca de 5 milhões de palestinos
vivem em terras ocupadas sem direitos políticos e sem um Estado próprio.
A China é o maior desafio – que no longo
prazo moldará a ordem internacional, determinando se o sistema aberto
descambará ou não para uma segunda Guerra Fria com uma corrida armamentista
envolvendo armas nucleares, guerra espacial e inteligência artificial. A
estratégia que Biden tem adotado é nuançada, enfatizando competição e dissuasão
ao mesmo tempo que tenta construir uma relação funcional com Pequim.
Recentemente, essa estratégia parece ter
rendido resultados, incluindo um tom mais conciliatório dos chineses. A mudança
tem muito a ver com os problemas econômicos de Pequim. Mas parte do crédito vai
para uma política americana que aplicou duras medidas e, ao mesmo tempo,
encorajou diálogo e diplomacia.
CONTINUIDADE. Apesar das políticas bem
projetadas para cada uma dessas regiões, o governo Biden confronta a realidade
de que a política doméstica dos EUA poderá tirar dos trilhos todo o progresso.
Se o apoio americano à Ucrânia titubear, a determinação europeia também
fraquejará, e o líder da Rússia, Vladimir Putin, confirmará sua previsão de que
é capaz de prevalecer sobre o Ocidente.
Grandes eleitorados, nos EUA e na Europa,
ainda apoiam a Ucrânia, mas os EUA estão experimentando crescente oposição de
uma nova direita isolacionista. E o Partido Republicano está prestes a indicar
Donald Trump como candidato à presidência, um homem que não esconde sua aversão
pela Ucrânia nem sua admiração por Putin.
No Oriente Médio, Biden encara o premiê
Binyamin Netanyahu, que é adepto da política de se apropriar do apoio americano
e resistir a todos os conselhos. Desde os Acordos de Oslo, na década de 90,
Netanyahu encontrou maneiras de fingir apoiar o processo de paz quando, na
verdade, o eviscerava. Da última vez que Washington tentou pressioná-lo, ele
driblou o ex-presidente Barack Obama e mobilizou apoio diretamente no
Congresso.
Talvez reconhecendo isso, Biden parece tentar
arregimentar os Estados árabes – principalmente a Arábia Saudita – para
influenciar Israel, em vez de movimentar-se no Capitólio.
Com a China, a cuidadosa combinação do
governo Biden entre dissuasão e diplomacia só pode funcionar se a política
doméstica americana não a solapar. A política em torno da relação com a China
permanece beligerante.
A Comissão Especial da Câmara, que trata do
Partido Comunista Chinês, acaba de recomendar medidas mais severas contra a
China, incluindo um conjunto de tarifas que, segundo estimativa da Oxford
Economics, custaria à economia dos EUA até US$ 1,9 trilhão nos próximos cinco
anos e poderia ocasionar uma ruptura na economia global.
Se Washington recuar, agressões e desordens
irromperão nessas três regiões. O ano de 2024 poderá ser um ano no qual a
política repugnante e polarizada no Capitólio acabará moldando o mundo em que
viveremos nas próximas décadas.
Tradução de Augusto Calil
*É colunista do Washington Post
Eu ainda tenho Jimmy Carter como o presidente dos EEUU a quem sou mais simpático. Mas o Joe Biden tem se mostrado um gigante no enfrentaremos das múltiplas ameaças a um mundo livre e democrático.
ResponderExcluirSe o atual presidente dos Estados Unidos neste momento não fosse Joe Biden, eu não imagino qual seria agora o estado do mundo diante do avanço dos que articulam uma Ordem Mundial autoritária liderada por Xi Jiping e apoiada por ditadores como Vladimir Putin e por populistas diversos.