sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Fernando Abrucio* - Os arautos do novo reformismo

Valor Econômico

Não há sistema político perfeito, mas a agenda atual de reformas tende a gerar mais fragmentação, instabilidade e ter como corolário final a produção de um clima propício à demanda por um salvador da pátria autoritário

Quando um problema público se torna de difícil resolução, há anos surge um mantra no país: é preciso fazer uma reforma política. Mas, ao contrário do que propaga o senso comum, o Brasil fez várias delas desde a Constituição de 1988. Os resultados dessas transformações foram variados e, na verdade, só podem ser avaliados em sua interligação, e não isoladamente, e por meio da análise de quais são os propósitos dos reformistas. O mudancismo está de volta na boca de importantes lideranças. Duas perguntas se tornam inadiáveis: o que querem os defensores das novas mudanças institucionais e quais os possíveis efeitos de tais alterações?

Para desmascarar a visão de big bang que alimenta o debate da reforma política, vale relembrar, de forma sintética, algumas das transformações institucionais pelas quais o país passou desde 1988. Depois de recusar o sistema parlamentarista em plebiscito, em 1993, e consagrar eleições casadas para os planos nacional (presidente e Congresso Nacional) e estadual (governador e Assembleias Legislativas), o ímpeto reformista ficou marcado pela aprovação do instituto da reeleição, no final do primeiro governo FHC, numa toada de fortalecimento do Poder Executivo em todas as esferas federativas.

Mais adiante, a agenda mudancista voltou-se, mais de uma vez, à alteração das regras das medidas provisórias, numa busca de equilíbrio dos Poderes. Houve ainda reformas para tentar reduzir a corrupção eleitoral, como a Lei da Ficha Limpa e posteriormente a decisão do STF que restringiu fortemente o financiamento privado de campanhas. No plano do sistema eleitoral, houve a alteração do modelo de coligações eleitorais e da representação congressual dos partidos. Em menor medida, ocorreram também reformas do Sistema de Justiça, como a criação do CNJ e mesmo a mudança da aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo - que são obrigados a se aposentar aos 75 anos de idade (antes era aos 70).

Por fim, o que mais chamou a atenção nos últimos anos foram reformismos vinculados ao fortalecimento do Congresso Nacional frente ao Executivo federal. Nesta lista estão, principalmente, a modificação da legislação sobre vetos presidenciais e um conjunto de leis destinadas a ampliar o poder de emendas dos congressistas. No contexto dessa onda reformista pró-Legislativo, vicejam hoje três propostas: a primeira diz respeito às alterações na governança do STF, como o fortalecimento de sua colegialidade e, sobretudo, a criação de mandatos aos ministros do Supremo; a segunda se refere à proposição do fim da reeleição para os cargos do Executivo; e, finalmente, como a medida mais ampla desse pacote, a adoção do semipresidencialismo.

O conjunto das reformas políticas feitas pelo país nos últimos 30 anos pode ser classificado em três tipos, que em boa medida representam três ondas mudancistas. O primeiro tipo é o do reformismo em prol do poderio do Executivo, hegemônico durante os anos 1990 e 2000, que visava dar maior capacidade governativa e estabilidade ao país depois de dois períodos bastante conturbados da redemocratização - os governos Sarney e Collor. Depois, como segunda tipologia, vem uma lista de diversas mudanças institucionais visando aperfeiçoar a representação e a accountability democrática, como são os casos de alterações no sistema eleitoral, de aperfeiçoamentos no Sistema de Justiça, de combate à corrupção ou mesmo modificações que ampliaram a participação da sociedade civil no jogo democrático e nas políticas públicas.

A tipologia que melhor descreve a atual onda mudancista é uma terceira: ela diz respeito a transformações voltadas ao fortalecimento do Congresso Nacional vis-à-vis o Poder Executivo, além de gerar um movimento centrífugo de reforço do sentido individual do mandato dos parlamentares. Interessante notar que a reforma eleitoral aprovada em 2017 visava reduzir o número de partidos e incentivar uma lógica política mais centrípeta, porém, as reformas do emendismo venceram esse jogo, gerando um modelo mais baseado no corporativismo parlamentar e, ao mesmo tempo, na sua expressão mais individualista e fragmentada de representação.

As propostas reformistas atuais têm nesta terceira onda um importante balizador. Com uma feição que combina corporativismo e individualismo parlamentar, o vetor pró-Legislativo é o que explica, em parte, o caminho de reformas que está sendo proposto. Entretanto, há algo além disso: parte da explicação da motivação para o novo ímpeto mudancista está na polarização bolsonarista e no seu projeto antidemocrático.

O bolsonarismo tem um projeto de oposição muito claro: atuar não somente contra o governo lulista, mas também contra elementos da estrutura institucional, com o objetivo de fragmentar o poder e, no limite, desestabilizá-lo. O ataque ao Supremo não tem como motivação apenas uma revanche contra a reação de alguns de seus ministros diante do projeto de golpe de Estado comandado pelo presidente Bolsonaro. Também há uma percepção de que o enfraquecimento do STF é uma forma de ter menos empecilhos para futuros caminhos autoritários numa possível volta ao poder dos bolsonaristas e seus satélites - e infelizmente parte da direita virou apenas um apêndice mais limpinho do bolsonarismo.

O semipresidencialismo e o fim da reeleição, à primeira vista, teriam um sentido oposto ao desejado pelo bolsonarismo. Afinal, seriam formas mais favoráveis tanto ao fortalecimento do Congresso frente ao Executivo, como ao enfraquecimento de líderes locais que têm sido reeleitos e criado um poderio próprio, mas que com a possibilidade de um só mandato se tornariam mais dependentes dos deputados federais. Eis aqui o sentido da agenda de reformas do Centrão. É um modelo lógico que deriva da força adquirida pelo mudancismo emendista.

Entretanto, a profundidade dessas duas reformas e seus efeitos sistêmicos são muito mais amplos e incertos do que aumentar a fatia dos parlamentares no Orçamento da União. Há grandes chances de essa agenda reformista gerar dois resultados indesejáveis aos líderes do Centrão. O primeiro é aumentar a responsabilidade governativa do Congresso Nacional sem que ele tenha um mandato referendado diretamente e nacionalmente pelo eleitorado. O impacto da pressão social que advirá desse descompasso tenderá a ser enorme. Países que adotaram o semipresidencialismo têm partidos nacionais muito mais fortes e enraizados na sociedade.

Desse modo, o primeiro resultado indesejável dessa agenda reformista, especialmente uma possível instalação do semipresidencialismo, pode ser o aumento da instabilidade governativa, tal qual houve no período Sarney, o que gerou demandas por salvadores da pátria. Advinha quem mais se interessaria por uma situação que gerasse pressões antissistêmicas e por uma liderança popular forte, quiçá com contornos mais autoritários? Muitos dos líderes democráticos que acham o semipresidencialismo ética e esteticamente melhor do que o presidencialismo de coalizão podem estar chocando o ovo da serpente.

Outro resultado indesejável advém de um possível fim da reeleição. Acredita-se que tal medida reduziria os abusos do governante de plantão e abriria mais portas à alternância e a novos quadros. Quem pensa de tal maneira se esquece que, antes, a luta se dava internamente aos grupos de uma forma fratricida, o que gerava um uso ainda mais indiscriminado dos instrumentos do poder. Vale recordar da frase do governador paulista Orestes Quércia quando elegeu o inexpressivo Fleury Filho: quebrei o Estado, mas elegi meu sucessor.

É uma ilusão pensar que o fim da reeleição e o mandato de cinco anos vão disciplinar o uso eleitoral das armas governamentais. Não era assim antes, e nada diz que o será num contexto de aumento do clientelismo com a ascensão do Centrão e de fortalecimento do autoritarismo com a emergência do bolsonarismo. Além disso, e não menos importante, criou-se um recall em relação ao segundo mandato, expondo todas os problemas e podres do incumbente, o que o tornou necessariamente mais accountable, mesmo com todos os problemas vinculados à utilização da máquina pública.

Não há sistema político perfeito, mas a agenda atual de reformas tende a gerar mais fragmentação, instabilidade, dificuldade de responsabilização e, o pior de tudo, ter como corolário final a produção de um clima propício à demanda por um salvador da pátria autoritário. Se as reformas iniciadas na década de 1990 juntavam principalmente as forças advindas da redemocratização, especialmente tucanos e petistas, a proposição atual advém de grupos muito menos preocupados com o aperfeiçoamento da democracia. Isso deveria ser levado em conta antes de qualquer debate reformista.

Reformas institucionais mais profundas só devem ser feitas em situações de ampla legitimidade, com base em evidências e tendo como parâmetro o efeito sistêmico das mudanças. Afinal, o semipresidencialismo valeria para todos os três entes federativos? Qual seria a consequência do descasamento do mandato do presidente em relação aos congressistas? Qual eleitor seria o centro das decisões, o do ano da disputa presidencial ou o da data da eleição legislativa?

A resposta a essas perguntas mostra o grau de incerteza que o país pode estar semeando. E o provável vencedor desse reformismo pode não ser a democracia.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

4 comentários:

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  2. PRECISAMOS SUPERAR A POLARIZAÇÃO ENTRE O POPULISMO DE LULA E O DE BOLSONARO.
    =》O Parlamentarismo pode ser nossa saída da polarização.

    ■■■Lula polariza todos os dias e acabou de coclamar o PT para fazer das eleições municipais uma disputa LulaXBolsonaro.

    Por seu lado, o bolsonarismo repete o PT e faz da política uma disputa BolsonaroXLula.

    ■Já observaram que a polarização aqui no Brasil é entre dois populistas atrasados, articulados os dois com as forças autoritárias e retrógradas que polarizam em vários paises no mundo todo até se imporem à força ou se servindo da democracia?

    ■Já observaram também que seus fascinados apoiadores, mesmos os que possuem algum senso crítico e independência, repetem a enganação de declararem seus grupos como comprometidos com a democracia?

    ■No Brasil dos últimos anos, estes dois grupos populistas que se dizem um de esquerda e outro de direita ganharam maior expressão politica e não mostram, neste espaço já grande de tempo após termos saído de uma ditadura de ultra-direita, nenhum compromisso verdadeiro com o desenvolvimento do país seguindo um projeto econômico liberal e democrático, não mostram nenhuma ação no sentido de realmente melhorar a educação do povo brasileiro e usam as escolas, as igrejas e as outras instituições como extensão ideológica para suas crenças políticas.

    Para avançarem no poder, até a corrupção e a manipulação do judiciário estes grupos politicos usam. Quem faz isso não pode ter mesmo nenhum compromisso com a democracia.

    De Jair Bolsonaro já não podíamos esperar nada mesmo no sentido dele se comprometer com democracia; Lula e o PT não fazem nenhuma questão de ter um projeto pensado para incluir o Brasil no bloco democrático do mundo e, muito pelo contrário, o que estamos vendo é, de forma escancarada, os blogues do PT atuando como cadeia de transmissão associada às máquinas de propaganda das ditaduras mais abusadas, a Rússia de Putin, a China de Xi Jiping, o regime do Irã e a Venezuela de Nicolas Maduro, todos regimes homofóbicos, misóginos e que assassinam até jornalistas, se jornalistas se tornarem obstáculos para seus projetos obscuros.

    Lula, que lidera esse projeto populista à esquerda no Brasil, não faz questão nenhuma de esconder que está articulado na defesa da instauração de uma nova ordem mundial autoritária e para isso chega a confrontar as democracias até mesmo na difícil questão atual da Ucrânia e a covarde agressão que a invasão da Ucrânia constitui para as democracias.

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    1. ■Toda ação politica dos populistas aqui no Brasil se reduzem quase que apenas a fazer movimentos eleitorais e buscar a ocupação de poder, mantendo a disputa polarizada entre eles e sem maior preocupação com a qualidade do exercício da política.

      Para hoje os dois populismos não têm nenhum projeto mais consistente para o Brasil, e do projeto que possam ter para amanhã, deste eu desconfio.

      Os dois populismos não disputam com projetos porque ideias não polarizam. Ideias tratadas e discutidas a sério levam a mais democracia e a menos polarização, quem polariza não está interessado em democracia, logo, não está interessado em discutir projeto.

      O projeto que estes populistas que se dizem de esquerda ou de direita têm para o Brasil eles não mostram; um projeto liberal eles não assumem e o que podemos é inferir suas intenções a partir das opções autoritárias de controle da sociedade e pelas ligações internacionais que alimentam.

      No Brasil, vê-se claramente que tanto Bolsonaro e o PL como Lula e o PT não se movem na política e no Congresso na direção das forças democráticas e sim se aliam com os mais corruptos e fisiológicos.

      Democráticos nos governos do PT ou de Bolsonaro, apenas os que aceitam ser cooptados.

      O que havia de mais democrático no Brasil e que possuia expressão política, os social-democratas do PSDB, hoje está reduzido a um grupo bastante ruim. O Partido Cidadania23, que poderia ser uma plataforma para boa politica conjunta entre centro-esquerda e centro-direita, está sendo esvaziado por consequência da polarização

      O PSDB e o Cidadania23 foram esvaziados por erros próprios, mas em muito também foram esvaziados pela agressões levianas que sofreram do PT, e ainda sofrem. Os melhores destes social-democratas do PSDB e do Cidadania, talvez por pensarem que a demonstração da boa qualidade política por si só convenceria o eleitor de sua melhor posição, se descuidaram e nem sequer defenderam sua própria reputação e honra contra as agressões praticadas às toneladas contra eles pelo PT e aliados.

      O exercício que o bolsonarismo faz da política não é civilizado. Mas o exercício que o PT faz da política também não é nada civilizado. Nunca foi!

      A prática do PT é tão venal quanto a do bolsonarismo!

      O bolsonarismo pode ter se fortalecido exatamente porque os políticos brasileiros melhores não souberam ou não tiveram disposição para enfrentar o PT com a melhor qualidade com que fariam e o vácuo levou ao fortalecimento do bolsonarismo, um grupo que pratica a mesma política bélica que o PT e que de fato é uma antipolítica, feita sem responsabilidade, sem
      atenção a valores ou a principios, e por isto é polarizante.

      O quadro a que chegamos é uma soma da péssima qualidade e intenções do populismo do PT associada a outra má qualidade e intenções que é o Centrão, com interesses diferentes, é certo, mas já há muito tempo aliados conjunturais. Para os interesses imediatos do PT esta aliança espúria está servindo.

      O bolsonarismo, quando no poder, repetiu a mesmíssima venal aliança Populismo-Centrão.

      Eu não vejo como, em uma sociedade na precária situação econômica e educacional que é a brasileira, nós consigamos juntar forças para derrotar a polarização entre estes dois blocos antipolíticos que são o bolsonarismo e o petismo se não por meio do parlamento, buscando eleger e alinhar parlamentares democráticos em contraposição a estes dois movimentos anticivilização.

      ■■■Sou a favor do parlamentarismo, de um parlamentarismo puro, sem isso de semipresidencialismo. Mas mesmo se for com semi-presidencialismo, se for para derrotar a polarização já serve.

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