sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

José de Souza Martins* - Morar na rua é morar?

Valor Econômico

A variação do tempo de moradia na rua recomenda que o “conceito” de morador de rua é impróprio e frágil. Sugere os graus de dificuldade da vítima para retornar a uma situação de normalidade social

A divulgação, pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com base no Cadastro Único, de estudo de Marco Antonio Carvalho Natalino mostra que o número dos chamados moradores de rua aumentou de 21.934, em 2013, para 227.087, em 2023: 935% em dez anos. Embora não sejam números relativos à totalidade da população, são indicativos de uma tendência de exclusão no que se refere a uma crise social grave. Os aspectos profundos do problema, porém, não se revelam nos fatores e motivos reconhecidos pelas próprias vítimas.

Há um conjunto imenso de complicações relacionadas com o que é de fato um dramático problema social. Os dados referem-se a causas definidas subjetivamente pelos próprios moradores de rua. É o que dificulta a pesquisa sobre suas verdadeiras causas, as estruturais, que se situam fora do marco da consciência da vítima. Porque limitada a impressões que ela pode ter de sua situação com base nos motivos de terceiros no respectivo grupo de referência, como a família, os vizinhos e outros agentes de relacionamentos cotidianos.

No rol do que as vítimas alegam ser motivos de morarem na rua estão: “problemas com familiares e companheiros (47,3%), que se tornaram razões para o desemprego (40,5%), o alcoolismo e outras drogas (30,4%), a perda de moradia (26,1%), ameaça e violência (4,8%), distância do local de trabalho (4,2%), tratamento de saúde (3,1%), preferência ou opção própria (2,9%) e outros motivos (11,2%)”.

No geral, essas indicações de motivos não são causas das pessoas morarem na rua, mas consequências. Em conversas que tenho com moradores de rua de São Paulo, os detalhes antropológicos de sua sociabilidade anômica mostram que é preciso levar em conta a complexidade das mediações e da causalidade recíproca de diferentes fatores decorrentes um dos outros na situação dessas pessoas.

O desemprego demorado acarreta tensões nas famílias, porque gera insegurança e decadência social, sobretudo a dessocialização das vítimas. O que elas foram até então deixa de ter sentido, a vida fica sem referências. Os membros da família atribuem responsabilidade por essa crise ao marido, ao pai, que não encontra trabalho permanente, que começa a beber, eventualmente a usar drogas. A situação de exclusão laboral se torna um estigma. Acarreta vergonha tanto para o desempregado quanto para seus familiares, que, impotentes, o penalizam e tornam insuportável a vida em família.

Sair de casa acaba sendo o resultado de uma expulsão disfarçada. Quando a fuga é da família ainda há a alternativa da favela. Quando é solitária, morar na rua é a alternativa.

A variação do tempo de moradia na rua, justamente, recomenda que o “conceito” de morador de rua é impróprio e frágil. Sugere os graus de dificuldade da vítima para retornar a uma situação de normalidade social.

A maior demora de permanência na rua está relacionada justamente com problemas familiares. A desagregação do principal grupo de referência da pessoa na estabilidade social entre nós. A família se tornou frágil por um conjunto de fatores que não se restringe a desemprego e suas decorrências. Para uma parte da população ela se tornou temporária, perdeu os mecanismos de reintegração do pai pródigo ou do filho pródigo. Cujo retorno a casa já não é esperado.

Há um belíssimo conto de Ana Maria Martins, em “Sala de espera”, cujo tema é o marido que se vai, que não tinha consciência do caráter relacional e recíproco do casamento. Na estação da Luz para tomar um trem para o interior, vê famílias embarcando. Percebe o que está abandonando. Resolve voltar para casa. Quando lá chega, encontra a casa vazia.

Na pesquisa do Ipea, 33,7% da população está na rua há até seis meses, 14,2% entre seis meses e um ano, 13% entre um e dois anos, 16,6% entre dois e cinco anos, 10,8% entre cinco e dez anos e 11,7% há mais de dez anos. A rua é apenas o lugar de uma sociabilidade alternativa e anômala de lenta desagregação da sociabilidade integrativa, que pode trazer a vítima de volta à casa e à morada.

Nesse sentido, os rótulos aparentemente sociais dizem algumas coisas sobre a realidade mas silenciam sobre outras. Silenciam sobre a dimensão propriamente antropológica da vida que é a do morar, do coabitar, da sociabilidade da convivência das diferenças que formam o todo, por exemplo, da família. Mas também da comunidade vicinal, sobretudo do reiterativo da vida cotidiana.

Nesse sentido, o Brasil não tem propriamente uma política de superação do estado de anomia dos que são privados das mediações sociais que tornam possível o tornar-se membro de uma sociedade, ser integrado, isto é, ser cidadão. Anomia da rua e cidadania se repelem, o anômico desintegra.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

3 comentários:

  1. Uma interessante pesquisa cujos resultados se agravam com o modelo econômico de Estado e com o aumento da imigração de fugitivos de outros países que automaticamente recebem a conotação de invasores sendo estranhos ao ambiente por eles ocupado.

    ResponderExcluir
  2. ■■■O número dos que têm o sol e a lua como teto deu um salto nos últimos dez anos. E isso de viver ao sol e à lua por falta de opção não é nada poético.

    O número de pessoas que dormem na rua saiu de perto dos 20.000 para se aproximar dos 250 mil. Isso, nos últimos 10 anos.

    Esta explosão no aumento dos que vivem na rua é muito triste. Mas fotografia da situação do Brasil nos últimos anos melhor do que esta não há!

    E é sempre importante estarmos conscientes de que o que começou a mostrar a cara há 10 anos foi cultivado em anos anteriores:: se o que foi feito em anos anteriores foi bom, a foto vai ficando mais alegre; se o que foi feito antes foi ruim, a foto vai ficando mais triste.

    O Brasil nos últimos 10anos, 15anos, foi ficando mais triste do que já era. Algumas situações hoje estão chegando ao insuportável !

    Passou da hora de pararem de ficar fazendo marqueting e dizendo que o PT e Lula têm preocupação com o pobre:: o que foi feito com o Brasil nos governos do PT equivalem a um desastre e quem estava mais exposto a este desastre eram exatamente os pobres.

    Agora, faz pouco tempo e por causa da pandemia de Covid-19 que escancarou uma realidade que estava sendo escondida por narrativas, o valor do auxílio para tanta necessidade foi aumentado para R$600,00 e está chegando a um auxílio médio de R$750,00. Mas quando Dilma foi afastada por imoeachment por estar sacando a descoberto na Caixa Econômica para pagar o auxilio por não ter dinheiro no Tesouro para repassar ao Banco, o valor do auxílio mal passava de R$100,00.

    E pensar que o PT votou contra quando o governo Fernando Henrique criou o auxilio, assim como votou contra o Plano Real.

    ■■Nós não fazemos reparos às narrativas do PT porque queremos ficar contra; nós fazemos reparos a essas narrativas porque as narrativas do PT estão longe da verdade e são feitas para enganar.

    No Brasil do PT o número de miseráveis subiu 19 milhões e isso não é nada pouco.

    No Brasil do PT a desigualdade de renda do trabalho diminuiu; no entanto, a desigualdade de renda dos trabalhadores em relação aos mais ricos, que já era socialmente muito vergonhosa, aumentou.

    No Brasil do PT a qualidade da educação só não saiu do lugar porque não tinha como piorar; mudar para melhor, que é o desejável e que daria condições para os abandonados melhorarem sua realidade, isso ninguém precisa esperar do PT:: se nos anos em que o PT pegou um país mais arrumado e surfou a melhor onda de crescimento mundial o PT desperdiçou com projetos e políticas erradas, agora que novamente o Brasil é o país estragado pelo próprio PT é que nada vai melhorar mesmo!

    ■■■Alguém pode tentar contornar assim:: "Mas agora foi feito o Arcabouço Fiscal".
    ■O "Arcabouço" piora o problema::

    O chamado Arcabouço Fiscal até cria um limite para a irresponsabilidade da gastança do tipo que fazem populistas como Lula e Bolsonaro. Mas precisar desse freio por si só não é nenhuma virtude e, devido à situação difícil da economia que o PT e Bolsonaro deixaram o país, e no caso da economia foi muito mais o PT que fez a situação ficar dificil do que Bolsonaro, Lula já não teria muita margem para gastar mesmo.

    O "Arcabouço", para Lula e o PT, tem na realidade uma utilidade exatamente diferente:: a utilidade do "Arcabouço" para Lula e o PT é autorizar gasto mesmo quando houver queda de receita.

    ■Como no quadro da economia já estava sinalizado que nos próximos anos ninguém ia ter maior espaço para gastar, o surgimento do "Arcabouço" é um instrumento que autoriza que gastem mesmo quando a meta de arrecadação não for alcançada.
    =》É pouco o gasto que o "Arcabouço" autoriza no caso de queda de receita:: autoriza aumento de 0,6% do PIB. Mas em ano de queda de receita o que o conhecimento técnico aconselha é fazer corte de gasto, e não aumentar o gasto como o "Arcabouço" autoriza mesmo quando a receita cair.

    ResponderExcluir
  3. Sem falar do preconceito enfrentado pelos moradores de rua.

    ResponderExcluir