quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

José Eduardo Campos Faria* - O embate entre o Senado e o STF e a ameaça à democracia constitucional do País

Jornal da USP

A aprovação da PEC que restringiu as prerrogativas monocráticas dos ministros do Supremo Tribunal Federal, impedindo-os de suspender por meio de decisões individuais a vigência de leis aprovadas pelo Poder Legislativo e atos do chefe do Poder Executivo, sob a justificativa de que elas interferem na autonomia desses dois Poderes e de que já estava na hora de se restabelecer o princípio processual da colegialidade da corte, não foi causada por problemas ocorridos recentemente. Na realidade, ela resulta de diferentes fatores estruturais, alguns dos quais são bastante antigos.

Um desses fatores foi a ampliação, promovida pela Constituição de 1988, do número de entidades com prerrogativa legal para impetrar no Supremo ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão arguição de descumprimento de preceitos legais. Outro fator está no imenso poder hoje detido pelo Supremo. Além de atuar como corte constitucional, ele é uma corte de cassação e um tribunal de primeira instância com competência para julgar detentores de mandatos eletivos. A corte também atua na direção do Tribunal Superior Eleitoral e ainda controla o funcionamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Não bastasse isso, ainda há mais uma importante herança da Constituição de 1988. Dada a complexidade da sociedade brasileira, que vem se dividindo há décadas em sistemas funcionalmente diferenciados que, por sua vez, tendem a se subdividir em novos subsistemas, a Assembleia Constituinte teve de recorrer a uma combinatória entre regras e princípios constitucionais. Canonizadas pela cultura bacharelesca que durante muito prevaleceu na cultura jurídica brasileira, as regras se expressam por meio de conceitos claros e objetivos e são autoaplicáveis, com base numa interpretação secundum legem. Valorizados pela influência do realismo americano na renovação do pensamento jurídico, os princípios se expressam por meio de conceitos vagos, plurívocos e semanticamente indeterminados, o que exige que sua aplicação seja feita por meio de uma ponderação de interesses.

Com isso, os princípios – como os da boa-fé, da moralidade pública, da função social do contrato, da função social da propriedade e do trabalho como “condição da dignidade humana”, por exemplo – têm uma característica que as regras não têm. Trata-se da dimensão da importância do que está em jogo num litígio judicial. Justamente porque os princípios são mais vagos do que as regras, a ponderação sobre os interesses em conflito permite que os juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores levem em conta alguns critérios, como adequação, necessidade, proporcionalidade e até mesmo a permeabilidade a determinados argumentos de natureza moral.

O que levou a Assembleia Constituinte a optar por uma combinatória entre regras e princípios no texto da Carta de 1988 é o fato de que, numa sociedade complexa como a nossa, as regras jurídicas tendem a ser ineficazes. Se por um lado elas funcionam bem nos contextos em que há uma cultura comum, valores sedimentados e comportamentos repetitivos, como ocorre nos países da Europa Ocidental, por outro deixam a desejar em contextos como o latino-americano, no qual se inclui o Brasil, em que há muitas fraturas sociais, acentuadas desigualdades econômicas, enorme diversificação de interesses particulares e novas rotinas. Para este tipo de contexto, os princípios tendem a ser mais eficazes do que as regras, uma vez que permitem aos juízes, desembargadores e ministros julgar os casos judiciais que lhes são submetidos levando em conta as especificidades dos locais em que os conflitos eclodiram e avaliando suas consequências naquela comunidade, indo assim muito além dos autos.

Como, diante das especificidades do País, a Assembleia Constituinte não teve outra saída a não ser adotar um número muito maior de princípios do que de regras jurídicas, a maleabilidade inerente aos princípios aumentou significativamente o alcance das técnicas hermenêuticas. E como os tribunais não podem deixar sem uma resposta os conflitos que lhes são levados pelas partes beligerantes, em busca de uma solução, a conjugação de todos esses fatores multiplicou o protagonismo da magistratura na vida política, econômica e social brasileira. Apesar do natural e inevitável risco de interpretações contraditórias dos princípios em casos polêmicos, bem como de equívocos e aumento de arbítrio judicial nos julgamentos, foi por isso que o Judiciário passou a impressão de estar interferindo na jurisdição do Executivo e do Legislativo, o que levou seus integrantes a serem acusados de “ativismo”. E também foi por isso que, beneficiadas pelo vácuo de poder do último presidente da República, as bancadas mais fisiológicas, as bancadas neopentecostais e algumas bancadas corporativas do Senado se sentiram suficientemente fortes para investir contra o órgão de cúpula do Judiciário, aprovando a PEC que limita suas decisões monocráticas e tenta retirar da corte a prerrogativa de estabelecer suas próprias regras internas.

Por mais que a PEC aprovada pelo Senado seja, por um lado, redundante em alguns pontos, por tratar de casos já regulados pela ordem jurídico-constitucional, e pressione por outro lado a corte a voltar a atuar como uma instituição colegiada, deixando de se comportar como um “arquipélago com onze ilhas”, essa ofensiva é uma ameaça à democracia constitucional do País. Entre outros motivos porque, sentindo-se empoderadas com a PEC aprovada pelo Senado, as bancadas religiosas, corporativas e do Centrão – com suas composições muitas vezes cambiantes e fluidas – poderão apresentar PECs novas, provocativas e até antidemocráticas. Poderão, inclusive, tentar recorrer à PEC com o objetivo de restringir as prerrogativas de quem é responsável por aplicar as leis e de esvaziar o papel da revisão judicial exercido por uma corte constitucional independente, ignorando assim cláusulas pétreas em matéria de separação de poderes e garantias fundamentais.

Mas não é só isso. Como, pela Constituição, o Supremo tem o poder constituinte derivado que lhe foi delegado pelo Poder Constituinte originário de controlar a constitucionalidade e, por consequência, de endossar ou considerar inconstitucionais alterações parciais na Carta em vigor, essa prerrogativa entreabre o risco de uma profunda crise institucional. Afinal, o que poderá ocorrer caso o Supremo classifique como inconstitucionais determinadas PECs aprovadas pelo Senado e pela Câmara com base nos procedimentos formais vigentes, cassando ou reduzindo competências da corte? Em que medida um Centrão que cada vez mais age desenvolto e sem limites morais em suas ambições morais não pode se deixar levar pela ilusão de capturar o Executivo e o Judiciário, submetendo ambos os Poderes aos interesses oligárquicos e paroquiais de determinados grupos de parlamentares?

Por fim, em um cenário sombrio e perturbador como esse, em que medida alguns setores das Forças Armadas não se sentirão mais uma vez estimulados a invocar a ideia de “poder moderador” – ou, na realidade, de um “poder desestabilizador”, como dizia o historiador José Murilo de Carvalho, recém-falecido –, sob a justificativa de que o regime democrático é incapaz de assegurar a lei e a ordem?

*José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP. Jornal da USP, 1/12/23 

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