O Globo
Um vestibular apenas com títulos de autoras
desafina o coro
Como Nélida Piñon, entre vários outros
geniais autores e ensaístas, companheiros de viagem, não acredito que haja uma
literatura feminina. Existem bons e maus livros. Quase sempre resistente a
modismos, seja de direita ou de esquerda, até então, a Universidade de São
Paulo sucumbiu à maionese. Em 2026, o cardápio de questões oferecidas aos
vestibulandos terá como base apenas ficções escritas por mulheres. Me segura
que vou ter um troço.
Não é que nas provas anteriores só se contemplassem livros de macho alfa. Do tipo que cospe no chão e palita os dentes. E ali se identificasse uma candente misoginia literária, deslavado preconceito. Pelo contrário. Havia um cenário baseado em qualidade, em contundência criativa. Na lista obrigatória de leitura, há muitos vestibulares, ombreiam Machado de Assis e Cecília Meireles; Milton Hatoum e Clarice Lispector — e por aí vai. Vale dizer ainda que Mário de Andrade, Cruz e Sousa e mesmo Machado não eram matéria de prova por ser pretos (ou pardos); constavam ali pela excelência de suas obras. Tal lupa só apequena.
Estivessem vivas, Nélida, Lygia Fagundes
Telles ou Hilda Hilst, porque assim pensavam, tenho certeza, atirariam, se
elencadas sob o critério de gênero, e não literário. Falo de grandes autoras,
não de marrecos ideológicos. Seria demérito, e não saudação. Algo como colar na
prova.
Se o critério é a diversidade, como
justamente se reclama, um vestibular apenas com títulos de autoras desafina o
coro. Os conflitos, dramas, aleivosias e inconstâncias da alma, comuns ao ser
humano, são tratados por todos os integrantes da sociedade — e os ideólogos da
USP pretendem reduzir a visão dos estudantes a um escaninho. Assim é a esquerda
identitária.
A direita, claro, tem outras idiossincrasias
ideológicas. Apesar de constar das diretrizes educacionais, vários estados
brasileiros procuram diminuir, quiçá eliminar, o ensino de sociologia e
filosofia. São diretos na ojeriza ao verbalizar que ambas as disciplinas apenas
enchem a cabeça de abobrinhas — e formam comunistas! Um intelectual da boa
direita como José Guilherme Merquior (aquele que alertou sobre o plágio
cometido por Marilena Chauí, antes ícone universitário do PT) diria que a educação pertence,
antes de tudo, ao homem — não é coisa de direita ou de esquerda. No Brasil, a
clivagem tornou-se folclore difundido pelos vassalos da ditadura militar, cujo
trabalho, além de torturar os adversários políticos, foi destruir o ensino
público brasileiro. Para não dizer que não falei de números, lembremos a
equação formulada pelo capitão Bolsonaro: - 4% + 5% igual a 9% positivo. Eita.
Ainda no terreno do chiste, sendo mais triste
do que engraçado, durante a campanha eleitoral passada Fernando
Haddad foi advertido por um empresário de que não apoiaria sua chapa
por discordar das ideias do pensador marxista Antonio Gramsci. Haddad,
curiosamente bem-humorado naquele dia, perguntou:
— A qual obra dele o senhor se refere? O
interlocutor direitista tornou à sua irrelevância intelectual.
Se a esquerda identitária veta autores num
dos maiores vestibulares do país, ao final um ato candente e explícito, se não
de censura, mas de exclusão ideológica, de cepa stalinista, a extrema direita
proíbe a seco a leitura de títulos considerados… perigosos. Como se no Brasil
qualquer livro causasse mais danos que o orçamento secreto ou as viagens
políticas de Eduardo
Bolsonaro. Da sanha da Secretaria de Educação de Santa Catarina,
relegados a um calabouço, não escaparam obras cujos enredos flagram regimes
autoritários ou nazistas. Entre os abatidos, a clássica distopia “Laranja
mecânica”, de Anthony Burgess, também transformada em filme pelo genial Stanley
Kubrick; “O diário do diabo” com a história do ideólogo nazista Alfred
Rosenberg; ou ainda “A química entre nós”, um água com açúcar menos letal que
qualquer conceito difundido pela dupla Michelle-Damares.
Do mesmo jeito que a extrema direita precisou
prender Lula para
ganhar com Bolsonaro em 2018, e depois perder mesmo com a máquina de governo à
mão, a esquerda identitária dinamita o universo educacional brasileiro ao
excluir autores de seu vestibular. Não é assim que a sociedade ganhará em
diversidade. Diminuir as aulas de sociologia ou filosofia também não tornará os
estudantes menos críticos. Ou terrivelmente crentes.
Boa reflexão.
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