O Globo
A maioria negra registrada pelo Censo é mais
do que estatística. É o momento em que os números mostram que o país se afasta
da negação
Foi a travessia de uma fronteira a que o
Brasil cruzou no último Censo ao
se reconhecer majoritariamente como pardo e preto. A caminhada veio de longe e
parte dela ocorreu em pouco mais de vinte anos. Do ano 2000
para cá aumentou em 42,3% os que se declaram pretos, 11,9% os que se definem
como pardos. Juntos formam a maioria dos brasileiros. Sempre
foi assim, sempre fomos um país de maioria negra. Mas o pertencimento veio aos
poucos e tem um profundo impacto em todos os níveis da vida pessoal, cívica,
social e econômica. Quem viu a intensidade desse processo não pode deixar de
ter esperanças de um dia o país vencer o racismo em todas as suas formas e
perversidades.
Os negros sempre lutaram por reconhecimento e respeito. Das heroicas lutas da escravidão aos primeiros levantes na República. No fim dos anos 1940 e início de 1950, houve o Teatro do Negro, o jornal Quilombo, um rico movimento cultural liderado, entre outros, por Abdias Nascimento. Nos anos 1970, o Movimento Negro foi voz forte contra o racismo e contra a ditadura e, entre as figuras importantes, a lendária Lélia Gonzalez.
A cada passo, contudo, o racismo acabava
vencendo e impondo a imagem de um país majoritariamente branco que valorizava
apenas as raízes europeias. A ideia era que a miscigenação no Brasil tornara o
país diferente dos outros, sem diferenciação pela cor da pele. E que, ao
contrário dos Estados Unidos, não havia racismo entre nós.
As cotas vieram contrariar essa tese. Era
apenas uma política pública de aumento da inclusão de jovens pobres, pretos e
pardos nas universidades públicas, mas o debate ocorrido na época foi acirrado
e sacudiu as raízes de um desentendimento profundo sobre o país, sua natureza e
seu destino.
Em 2003, já mergulhadas nesse debate aqui no
GLOBO, Flávia
Oliveira e eu, com a repórter Débora Thomé, fizemos um caderno
chamado “A cor do Brasil”. O título era para dizer, vinte anos antes
desse reconhecimento que o Censo nos trouxe na semana passada, que o Brasil era
em sua maioria preto e pardo. O caderno revisitou o passado do movimento negro
encontrando preciosidades nos arquivos do fotógrafo Januário Garcia. Destacou,
num texto do maestro Ricardo Prado, a figura histórica do Padre José Maurício,
negro, filho de escravizada e mestre capela de Dom João. Débora foi buscar no
Jongo a raiz musical do país. O caderno ganhou no exterior o prêmio Jornalismo
para a Tolerância, da Federação Internacional de Jornalistas.
Visto daquele ponto, há 20 anos, é possível
ter noção de como o Brasil avançou. Em 2006, um manifesto de
intelectuais contra as cotas raciais foi assinado por pessoas
de destaque em diversas áreas e começava dizendo o seguinte: “o princípio da
igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da
República e um dos alicerces sobre a qual repousa a Constituição brasileira.
Este princípio encontra-se ameaçado de extinção”. Era uma política de reserva
de vagas, uma ação afirmativa, num país com vasta e persistente desigualdade
racial, mas enfrentou uma reação exagerada como essa de parte da
intelectualidade brasileira.
A política de cotas tem sido bem- sucedida
para além da inclusão no ensino superior. Foi o início de muitos outros
debates, políticas governamentais e ações corporativas para vencer as
distâncias sociais, num esforço nacional muito longe ainda do ponto ideal. É
preciso persistir.
Em 9 de dezembro de 1948, há 75 anos, o
editorial do primeiro número do jornal Quilombo, assinado pelo editor Abdias
Nascimento, começava assim: “Nós saímos — vigorosa e altivamente — ao encontro
de todos aqueles que acreditam — com ingenuidade ou malícia — que pretendemos
criar um problema no país. A discriminação de cor e de raça no Brasil é uma
questão de fato. Porém, a luta de Quilombo não é especificamente contra os que
negam nossos direitos, senão em especial para fazer lembrar ou conhecer ao próprio
negro os seus direitos à vida e à cultura”.
A busca desse conhecimento de direitos é
antiga e, de diversas formas, foi interditada. Declarar-se preto ou pardo foi a
colheita de um esforço que atravessou gerações, uma luta que viu retrocessos,
como em certos momentos do governo passado. O dado divulgado pelo IBGE é mais
do que uma estatística. É o momento em que os números registraram a travessia
de um país que se afasta da negação e caminha para o seu pertencimento.
BRILHANTE!! Parabéns à colunista e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirVerdade,não esquecendo que o pardo não é preto,mas é negro,a negritude não é cor,é raça ou etnia,como queiram.
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