terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Míriam Leitão - A cor do Brasil e a longa travessia

O Globo

A maioria negra registrada pelo Censo é mais do que estatística. É o momento em que os números mostram que o país se afasta da negação

Foi a travessia de uma fronteira a que o Brasil cruzou no último Censo ao se reconhecer majoritariamente como pardo e preto. A caminhada veio de longe e parte dela ocorreu em pouco mais de vinte anos. Do ano 2000 para cá aumentou em 42,3% os que se declaram pretos, 11,9% os que se definem como pardos. Juntos formam a maioria dos brasileiros. Sempre foi assim, sempre fomos um país de maioria negra. Mas o pertencimento veio aos poucos e tem um profundo impacto em todos os níveis da vida pessoal, cívica, social e econômica. Quem viu a intensidade desse processo não pode deixar de ter esperanças de um dia o país vencer o racismo em todas as suas formas e perversidades.

Os negros sempre lutaram por reconhecimento e respeito. Das heroicas lutas da escravidão aos primeiros levantes na República. No fim dos anos 1940 e início de 1950, houve o Teatro do Negro, o jornal Quilombo, um rico movimento cultural liderado, entre outros, por Abdias Nascimento. Nos anos 1970, o Movimento Negro foi voz forte contra o racismo e contra a ditadura e, entre as figuras importantes, a lendária Lélia Gonzalez.

A cada passo, contudo, o racismo acabava vencendo e impondo a imagem de um país majoritariamente branco que valorizava apenas as raízes europeias. A ideia era que a miscigenação no Brasil tornara o país diferente dos outros, sem diferenciação pela cor da pele. E que, ao contrário dos Estados Unidos, não havia racismo entre nós.

As cotas vieram contrariar essa tese. Era apenas uma política pública de aumento da inclusão de jovens pobres, pretos e pardos nas universidades públicas, mas o debate ocorrido na época foi acirrado e sacudiu as raízes de um desentendimento profundo sobre o país, sua natureza e seu destino.

Em 2003, já mergulhadas nesse debate aqui no GLOBO, Flávia Oliveira e eu, com a repórter Débora Thomé, fizemos um caderno chamado “A cor do Brasil”. O título era para dizer, vinte anos antes desse reconhecimento que o Censo nos trouxe na semana passada, que o Brasil era em sua maioria preto e pardo. O caderno revisitou o passado do movimento negro encontrando preciosidades nos arquivos do fotógrafo Januário Garcia. Destacou, num texto do maestro Ricardo Prado, a figura histórica do Padre José Maurício, negro, filho de escravizada e mestre capela de Dom João. Débora foi buscar no Jongo a raiz musical do país. O caderno ganhou no exterior o prêmio Jornalismo para a Tolerância, da Federação Internacional de Jornalistas.

Visto daquele ponto, há 20 anos, é possível ter noção de como o Brasil avançou. Em 2006, um manifesto de intelectuais contra as cotas raciais foi assinado por pessoas de destaque em diversas áreas e começava dizendo o seguinte: “o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre a qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção”. Era uma política de reserva de vagas, uma ação afirmativa, num país com vasta e persistente desigualdade racial, mas enfrentou uma reação exagerada como essa de parte da intelectualidade brasileira.

A política de cotas tem sido bem- sucedida para além da inclusão no ensino superior. Foi o início de muitos outros debates, políticas governamentais e ações corporativas para vencer as distâncias sociais, num esforço nacional muito longe ainda do ponto ideal. É preciso persistir.

Em 9 de dezembro de 1948, há 75 anos, o editorial do primeiro número do jornal Quilombo, assinado pelo editor Abdias Nascimento, começava assim: “Nós saímos — vigorosa e altivamente — ao encontro de todos aqueles que acreditam — com ingenuidade ou malícia — que pretendemos criar um problema no país. A discriminação de cor e de raça no Brasil é uma questão de fato. Porém, a luta de Quilombo não é especificamente contra os que negam nossos direitos, senão em especial para fazer lembrar ou conhecer ao próprio negro os seus direitos à vida e à cultura”.

A busca desse conhecimento de direitos é antiga e, de diversas formas, foi interditada. Declarar-se preto ou pardo foi a colheita de um esforço que atravessou gerações, uma luta que viu retrocessos, como em certos momentos do governo passado. O dado divulgado pelo IBGE é mais do que uma estatística. É o momento em que os números registraram a travessia de um país que se afasta da negação e caminha para o seu pertencimento.

 

2 comentários:

  1. BRILHANTE!! Parabéns à colunista e ao blog que divulga seu trabalho!

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  2. Verdade,não esquecendo que o pardo não é preto,mas é negro,a negritude não é cor,é raça ou etnia,como queiram.

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