quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Congresso assume protagonismo na agenda nacional

O Globo

Apesar de senões no Orçamento e na pauta ambiental, avanço econômico revela compromisso com o país

Tem sido notável o protagonismo do Congresso na condução da agenda nacional ao longo dos últimos anos, sobretudo no campo econômico. Se outrora todos olhavam para o Executivo como força condutora das transformações, esse papel foi progressivamente partilhado com um Legislativo cioso de seu compromisso com o país. O movimento começou no governo Michel Temer, com destaque para a reforma trabalhista, se consolidou na gestão Jair Bolsonaro, com a reforma da Previdência, e alcançou um marco simbólico na promulgação da reforma tributária, que reuniu os presidentes da República, Luiz Inácio Lula da Silva; do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso.

A aprovação, um dos atos derradeiros em meio ao esforço de fim de ano, é a maior evidência de como o Legislativo não tem evitado encarar temas difíceis e promover reformas necessárias. A tributária vinha sendo discutida havia quase quatro décadas sem que se chegasse a consenso. É verdade que o texto aprovado não é perfeito e que ainda há um longo caminho para regulamentar tudo. Mas o país enfim conseguiu encontrar um rumo para modernizar o caótico sistema tributário que penaliza empresas, atormenta contribuintes e degrada o ambiente de negócios.

O feito é singular também porque o Parlamento se uniu em torno de um objetivo comum, fato raro nestes tempos de polarização. Deputados e senadores souberam pôr os interesses do país acima das diferenças ideológicas. Não faltará quem reivindique para si o sucesso da empreitada, que certamente teria sido impossível sem a determinação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Mas o papel de Lira, de Pacheco e dos demais congressistas foi fundamental. Não há como deixar de reconhecer o esforço coletivo necessário para promover uma mudança que vinha amadurecendo havia anos — mas todos os governos anteriores haviam preferido deixar para depois.

A reforma tributária não foi o único episódio recente em que os parlamentares agiram com espírito republicano, sintonizados com os anseios do país. O Parlamento soube conter os exageros que a própria bancada governista queria instaurar no novo arcabouço fiscal defendido por Haddad e, novamente alinhado com o Ministério da Fazenda, aprovou uma regra que — ainda que inferior ao teto de gastos — foi recebida com alívio pelo mercado, como sinal de compromisso com o controle da dívida pública. Ainda nesse capítulo, o Congresso tratou de aprovar em seu esforço de fim de ano uma série de medidas que a Fazenda julga necessárias para cumprir a meta de zerar o déficit fiscal no ano que vem. Vale registrar, ainda, a aprovação do projeto que regulamenta as apostas esportivas e os jogos on-line no país, com que a Fazenda estima arrecadar cerca de R$ 2 bilhões em 2024.

O Legislativo também se encarregou de desarmar iniciativas do governo Lula que trariam danos evidentes à economia. Na tentativa de beneficiar concessionárias estaduais, o Executivo tentou mudar trechos do Novo Marco do Saneamento Básico aprovado no Congresso, importante conquista da sociedade para alcançar as metas de universalização dos serviços até 2033. Teve de voltar atrás ao vislumbrar iminente derrota no Senado, onde se articulava um projeto de decreto legislativo para anular os efeitos da mudança. Em dezembro, os parlamentares derrubaram o veto de Lula ao projeto que prorroga até 2027 a desoneração da folha salarial de 17 setores da economia que mais empregam, evitando pôr em risco emprego e renda, num momento em que o país colhe avanços em ambos.

A diligência do Legislativo não está, contudo, à prova de críticas. Também houve momentos em que o Congresso preferiu privilegiar interesses paroquiais ou ceder a grupos de pressão. Nenhum exemplo é mais eloquente que a aprovação de um Orçamento para 2024 repleto de distorções. A começar pelo valor recorde para emendas parlamentares (R$ 53 bilhões) e pela definição de regras que obrigam o pagamento de acordo com o interesse eleitoral dos congressistas. As emendas privilegiam critérios políticos em detrimento dos técnicos, deterioram a qualidade do gasto e das políticas públicas. Para piorar, os senadores e deputados ainda inflaram o fundo eleitoral de 2024 para quase R$ 5 bilhões, o dobro do valor de 2020 (R$ 2,5 bilhões em valores corrigidos) e o quíntuplo do estipulado pelo governo (R$ 939 milhões).

A pauta ambiental tem sido outra fonte de frustração no Legislativo. Os parlamentares parecem ter pouca consciência da relevância da preservação das florestas e da urgência na redução das emissões dos gases de efeito estufa. Só isso explica que, na semana passada, a Câmara tenha introduzido, no projeto que regulamenta o mercado de carbono no Brasil, mudanças que obrigarão o Senado a reexaminá-lo, retardando sua implementação. Teria sido mais produtivo aprová-lo, ainda que com imperfeições, para acelerar a cultura da negociação de créditos de carbono, essencial para o Brasil cumprir as metas do Acordo de Paris.

Tudo somado, é positivo o saldo do Congresso em 2023. Não só em termos de produtividade — o volume de trabalho neste segundo semestre impressiona —, mas também pela relevância das propostas aprovadas. A agenda econômica, vitrine desse esforço, revela que, mesmo nos projetos mais complexos, é possível alcançar um consenso democrático. Fica claro que, a despeito da polarização política, o Brasil avança em temas prioritários.

Com urgência climática, país tem de regular mercado de carbono

Valor Econômico

Sem o mercado regulado, a descarbonização andará bem mais lentamente do que exige a urgência climática

As mudanças introduzidas pela Câmara dos Deputados no projeto de lei que cria um mercado de carbono regulado no Brasil frustraram a expectativa de que a legislação saísse do papel ainda neste ano. Agora, a proposta terá que voltar ao Senado e será votada em 2024. A regulação do mercado de carbono vai ser um passo importante para preservar as áreas florestais, combater o desmatamento e a degradação das áreas verdes, ajudar a enfrentar as restrições comerciais da União Europeia a produtos brasileiros por conta da suspeita de procedência e criar fonte de receita para incentivar a defesa do ambiente.

Após 10 anos de discussão, o Senado aprovou no fim de outubro o PL 412/22, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), inspirado no modelo de “cap and trade”, adotado em muitos outros países, que define o limite de emissão de poluentes e a comercialização de créditos de carbono para a compensação.

O projeto de lei foi então para a Câmara, onde o relator, o deputado Aliel Machado (PV-PR), acrescentou outras medidas, constituindo o PL 2148/15, aprovado na quinta-feira por 299 votos a favor e 103 contra. Como nessa manobra houve mudanças, o texto volta ao Senado. Se lá houver alterações, ainda retorna à Câmara.

A expectativa do governo e do presidente da Câmara, Arthur Lira, era que o projeto tivesse sido aprovado a tempo da COP28, encerrada a 12 dezembro, em Dubai. O texto fazia parte da pauta de sustentabilidade aprovada neste ano, que inclui a exploração de energia eólica no mar e a produção de hidrogênio verde. Agora, a torcida é que entre em vigor a tempo da COP30, que será realizada no Brasil, em 2025.

O projeto de lei aprovado na Câmara mantém a criação do SBCE e o modelo de “cap and trade”, pelo qual empresas que emitem de 10 mil a 25 mil toneladas de carbono equivalente por ano devem fazer um plano de monitoramento e enviar relatório anual ao Sistema. Acima de 25 mil toneladas anuais é preciso adotar medidas para reduzir emissões ou adquirir os créditos compensatórios.

Os créditos serão originados de atividades que favorecem o ambiente: recomposição, manutenção e conservação de áreas de preservação permanente (APPs), de reserva legal ou de uso restrito e de unidades de conservação; de unidades de conservação integral ou de uso sustentável com plano de manejo; e de projetos de assentamentos da reforma agrária. Um ponto importante a ser cuidado pelos legisladores é a credibilidade dos créditos gerados, tema debatido na COP28.

Nas discussões finais foi incluída a previsão de compensação ambiental de emissão de gases por veículos automotores, com a compra de créditos de carbono pelos proprietários de veículos, uma exigência absurda que não é feita pelos países que estão na vanguarda da luta contra o aquecimento.

Um ponto polêmico para os ambientalistas foi a exclusão da agropecuária da obrigatoriedade de se submeter aos limites de emissão de carbono, vantagem que já havia sido garantida pelo Senado. Calcula-se que a agropecuária é responsável por um quarto das emissões brasileiras, e o desmatamento, uma das principais causas, responde por quase metade das emissões. No entanto, a agropecuária está fora também da grande maioria dos sistemas adotados no exterior. O relator acolheu pedido da Frente Parlamentar Agropecuária para excluir da regulação setores do agronegócio, como a produção de insumos ou matérias-primas da atividade, por exemplo fertilizantes.

O relator estendeu os efeitos da lei também a mercados voluntários, como os existentes em vários Estados, que hoje podem receber créditos por projetos de preservação em seus territórios, o que não estava previsto na proposta do Senado. O tema chegou a paralisar temporariamente a votação porque o relator queria estabelecer que os Estados só poderiam vender créditos de carbono gerados em terras públicas, mas governadores da Amazônia não concordaram.

O fato é que já existe um mercado voluntário ativo; e muitas empresas vêm fazendo seus relatórios anuais de emissões por pressão dos acionistas, do mercado financeiro e para antecipar como podem ser atingidas pela nova regulamentação. A Microsoft vai comprar 1,5 milhão de créditos de remoção de carbono até 2032 da startup Mombak Gestora de Recursos, que está plantando mais de 100 espécies de árvores nativas em terras agrícolas desmatadas na Amazônia. O governo do Pará vai lançar até o fim do primeiro trimestre do ano que vem o edital de concessão para reflorestamento de uma das áreas de proteção ambiental mais ameaçada pelo desmatamento da Amazônia, a Triunfo do Xingu, no sudeste do Estado.

Há mais falhas: preservação de APAs e de reserva legal são obrigações exigidas por lei, e não poderiam ser usadas no mercado, que premia esforços adicionais para conter emissões. Esses erros podem ser corrigidos pelo Senado, que deveria colocar regras límpidas sobre as relações do mercado regulado com o voluntário. E, se o Senado corrigir os erros, a Câmara, tendo tomado para si a palavra final, não deve insistir neles. Sem o mercado regulado, a descarbonização andará bem mais lentamente do que exige a urgência climática.

Apetites moderados

Folha de S. Paulo

Pautas da direita e da esquerda se mexem devagar, o que pode incentivar diálogo

A legislação e a jurisprudência brasileiras eximem de punição o aborto realizado em fetos anencéfalos ou gerados por estupro. Tampouco há pena para a interrupção de gravidez que ameace a vida da mãe.

Há no país quem, como esta Folha, considere esses casos ainda restritivos demais e desalinhados do direito da mulher de dispor de seu próprio corpo. Também existem os grupos que julgam excessivamente liberais as regras vigentes e propugnam por apertá-las.

Para o alívio de uns e a frustração de outros, e vice-versa, a depender do vetor da notícia, a inércia político-institucional do Brasil tem dificultado bastante seja a flexibilização, seja o endurecimento da lei.

Não foi por outra razão que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, decidiu não pautar já a ação que poderia descriminalizar até determinado prazo de gravidez todos os abortos, a despeito da motivação. A reação na sociedade e no Congresso Nacional seria duríssima.

Essa espécie de moderador do apetite político vale em geral para os demais temas da chamada pauta de costumes. Ela raramente dá ensejo a uma nova legislação ou súmula judicial. Nas poucas vezes em que a barreira é rompida, a mudança tende a ser modesta.

Registre-se, a propósito, a fraca produção legislativa da nova direita brasileira nesse capítulo. O movimento logrou eleger o presidente da República em 2018 e multiplicar sua bancada parlamentar em 2022, mas nada de relevante aprovou de sua agenda retrógrada de valores.

A gritaria contra direitos de minorias e pelo armamentismo tem ficado restrita a comissões temáticas da Câmara. O centrão reprimiu a ascensão ao plenário de proposições dessa natureza, repetindo no primeiro ano da gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o que fizera na quadra de Jair Bolsonaro (PL).

A força que inibe conversões radicais na política também pode atuar no outro polo do espectro ideológico. Grupos de esquerda que dão primazia a identidades baseadas em gênero, cor e orientação sexual viram-se contrariados por nomeações de Lula no Executivo, Judiciário e Ministério Público.

Por mais exasperante que a tendência à manutenção do statu quo possa parecer aos militantes, ela age ao mesmo tempo como um desestimulador dos atalhos —perigosos na política— e um incentivo à tarefa de convencer os não convertidos, o que requer abertura ao diálogo e à negociação.

Diálogo e negociação têm sido mais frequentes na economia, a ponto de este mesmo Congresso ter aprovado a reforma tributária, superando um impasse de décadas. Nada impede que outros temas possam avançar pelo método do debate e do compromisso.

Carga pesada

Folha de S. Paulo

Investigação escassa sobre roubos a caminhões em SP é prejuízo social e econômico

Estima-se que cerca de 75% das mercadorias que circulam no Brasil sejam escoadas por meio da malha rodoviária —não há paralelo entre as maiores economias globais. Num país de dimensões continentais, não raro com patrulhamento insuficiente nas estradas, o roubo de carga tornou-se alvo fácil de quadrilhas especializadas.

Além de contribuir para o aumento da violência e da insegurança nas regiões afetadas, o delito impacta diretamente a economia formal, com prejuízos financeiros e logísticos para empresas, que são obrigadas a investir em escoltas armadas e, por vezes, a elevar o preço do produto ao consumidor.

A atividade criminosa teve queda de 4,4% em 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mas ainda assim foram contabilizados mais de 13 mil roubos, quase a metade em São Paulo.

Pois é justamente no estado líder em ocorrências do tipo —e onde pelo menos 20% dos fretes nacionais têm a sua origem ou destino— que pouco se investigam os ataques a caminhões e carretas.

De acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública paulista, foram 4.424 roubos de carga de janeiro a setembro deste ano, mas apenas 494 inquéritos foram instaurados. Conclui-se, portanto, que apenas 11,2% dos casos são apurados formalmente pela polícia.

Apenas um motorista dos Correios relatou à Folha que foi assaltado 25 vezes; em uma delas, acabou espancado. Com uma coleção de boletins de ocorrência em mãos, ele disse ter notícia da elucidação de apenas uma das investidas.

Um delegado especializado chegou a declarar em palestra que 70% dos roubos de carga são falsos registros. Numa fraude batizada de "chave na mão", motoristas se aliam aos criminosos para o desvio da carga e, depois, registram a ocorrência como se fossem vítimas. O alto percentual é refutado por especialistas do setor e representantes de caminhoneiros.

De uma forma ou de outra, espanta saber que, no estado que dispõe da maior e mais equipada força policial, apenas 1 em cada 10 roubos de carga é agraciado com o devido processo investigatório.

Diante do equívoco histórico de negligenciar o modal ferroviário, ainda mais em país exportador de commodities, resta às autoridades investir pesado em tecnologias de rastreio, parcerias com transportadoras e Polícia Rodoviária e inteligência para identificar os receptadores dos produtos roubados.

Estado de eleição permanente

O Estado de S. Paulo

Pesquisas recentes reafirmam a cristalização da polarização entre petistas e bolsonaristas e a importância de líderes que se dediquem a deslegitimar a intolerância na política

Duas pesquisas divulgadas recentemente registraram o mesmo patamar de solidez das preferências do eleitorado em relação ao presidente Lula da Silva e ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Tanto o Datafolha quanto a Quaest mostraram que a esmagadora maioria diz não ter se arrependido do voto dado no 2.º turno de 2022 (90% segundo o Datafolha, 88% de acordo com a Quaest). O Datafolha também reafirmou o tamanho de cada grupo vinculado ao lulismo e ao bolsonarismo: 30% se identificam como petistas, enquanto 25% se apresentam como bolsonaristas, mesmos índices registrados em dezembro do ano passado. Até aí, os números garantem o mérito das duas principais lideranças políticas do País e das forças que os apoiam. Goste-se ou não, o fato é que ambos os polos vêm conseguindo galvanizar o eleitorado em torno de si, calcificando as preferências a tal ponto que parece haver menos chance de que eventos novos e até dramáticos possam mudar as escolhas das pessoas nas urnas.

O problema, no entanto, vai muito além do que ver um Brasil cindido ao meio. Questionar a polarização a que temos assistido nos últimos anos não significa apenas pensar numa terceira via, buscar um caminho do meio ou desejar uma suposta neutralidade diante dos polos mais visíveis. Criticar a polarização não é nem mesmo negar a existência de polos ou buscar eliminá-los. Despolarizar a política não significa esfriar o debate ou desaquecer as diferenças; é mostrar que o problema começa quando liberdade e pluralidade são sufocadas por uma mentalidade que deslegitima as diferenças e transforma os adversários no próprio problema a ser combatido.

O perigo da preservação desses números em torno de Lula e Bolsonaro, ou entre lulopetismo e bolsonarismo, é aquilo que os acompanha e sustenta a vida dos extremos: cisão, dissolução de grupos, abalo ou ruptura de amizades e relações, interdição de debates públicos e privados, demonização do adversário. Diferenças políticas são saudáveis, e conflitos são parte de uma democracia funcional. Mas não parece nada saudável que se repitam gestos e atos tóxicos movidos por hostilidades, extremismos, disseminação ou acolhimento de desinformação e discursos de ódio deformadores da realidade, ou simplesmente a demonstração de incapacidade de lidar com diferenças.

Reconhecer os problemas da polarização parece mais fácil, porém, do que identificar responsabilidades para esse estado de coisas. E um papel fundamental para aprofundar ou conter as divisões nacionais tem nome: liderança. Líderes populistas – como Lula, Bolsonaro ou Donald Trump, que agora tenta voltar à presidência dos EUA – costumam recorrer a gatilhos da polarização para manter suas bases mobilizadas e engajadas. Alimentam-se do adversário. Estimulam a demonização e a deslegitimação do inimigo. Naturalizam o ódio e a violência política, que passam a ser justificados e aceitos como defesa à identidade pessoal e de grupo entre aqueles que os apoiam.

Elites políticas podem, ao contrário, ajudar a moldar a visão dos grupos que os apoiam e legitimar as diferenças – sem que isso se converta em redução do seu papel. Podem conter, e não ampliar, a proliferação de discursos perigosos e comportamentos violentos. Tais atributos, no entanto, têm faltado a boa parte das lideranças petistas e bolsonaristas. Segundo a pesquisa Quaest, significativos 58% dos entrevistados afirmam, por exemplo, que o presidente Lula ajudou a desunir o País (35%, algo próximo do seu eleitorado mais fiel, acreditam que ele ajudou a unir). Entre os eleitores bolsonaristas, previsivelmente 89% consideram que Lula ajudou a desunir. Mas, quando presidente, era Bolsonaro um dos principais artífices da desunião. Em outra pesquisa recente do mesmo instituto, mais da metade (54%) afirmou conhecer alguém que já rompeu relações por causa da política. E quando perguntados se se sentiam mal por ter rompido relações por esse motivo, nada menos do que 75% afirmaram que não.

O Brasil está a um passo de virar um país da intolerância política, tisnado pela sensação de que estamos diante de uma eleição permanente – e uma eleição na qual o objetivo não é apenas vencer, mas obliterar o adversário.

A indignidade do trabalho infantil

O Estado de S. Paulo

Quase 2 milhões de crianças e adolescentes estavam expostos a atividades laborais danosas em 2022, um retrocesso inaceitável que expõe a omissão do poder público em várias dimensões

Em sua mais recente pesquisa sobre o trabalho infantil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) expôs a cruel e vexaminosa omissão do poder público diante de uma parcela expressiva de crianças e adolescentes. Mais de 1,9 milhão de brasileiros de 5 a 17 anos – 4,9% dessa faixa etária – exerceram atividades laborais em 2022, em prejuízo de seu desenvolvimento, de sua saúde e de sua escolarização. Desse universo, 756 mil estavam sujeitos às “piores formas de trabalho”, proibidas desde 2008 pelo Decreto 6.481. A estatística não poderia ser mais brutal e menos ofensiva ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Um único caso já seria motivo para preocupação e alerta às autoridades públicas. Quase 2 milhões é uma ofensa de múltiplas dimensões.

Os dados da Pnad Contínua do IBGE indicam a debilidade da aplicação da legislação brasileira e a ausência de políticas públicas efetivas para reverter acentuadamente um quadro que não condiz de nenhuma maneira com um país que se pretende desenvolvido. Ao iniciar a pesquisa, em 2016, o instituto constatou que 5,2% das crianças e adolescentes trabalhavam em condições não autorizadas pela lei. Houve recuo lento e gradual até 2019, quando esse universo baixou para 4,5% – ainda assim, inaceitável. Nos dois anos de pandemia, as estatísticas foram suspensas. Uma vez retomadas, verificou-se que, no último ano de mandato de Jair Bolsonaro, o Brasil retrocedeu ao patamar de 2017.

Não chega a causar surpresa a piora do trabalho infantil ao longo de uma gestão federal disruptiva tanto no enfrentamento da crise sanitária como na redução de níveis de pobreza e de desigualdade social e no impulso do ensino fundamental. A recente pesquisa do IBGE, no entanto, expõe o grau extremo de irresponsabilidade social e de desleixo bolsonarista com as futuras gerações. As provas estatísticas sobre o trabalho infantil somam-se à sua extensa lista de afrontas ao interesse nacional.

Nos detalhes, as estatísticas do IBGE revelam um contexto ainda mais grave. Mostram que, de 2019 a 2022, enquanto a população brasileira de 5 a 17 anos recuava 1,4%, mais 100 mil crianças e adolescentes, em sua maioria pretos e pardos, foram incorporados ao mercado de trabalho ou a atividades para consumo próprio – ambas não consentidas pela legislação. Dos estudantes nessa faixa etária, 87,9% foram enquadrados no conceito aceito internacionalmente de trabalho infantil. Receberam salários quase um terço menor do que ganhavam aqueles que haviam concluído ou abandonado os estudos. Ou seja, o mercado laboral para essa faixa incentiva a evasão escolar. Também replica os costumes consagrados no mercado de trabalho dos adultos: meninas receberam menos do que meninos; pretos e pardos, menos do que os brancos.

Igualmente avilta os direitos da criança e do adolescente o fato de que 449 mil, na faixa entre 5 e 13 anos de idade, exerceram atividades econômicas no ano passado e até mesmo as piores formas de trabalho – todas proibidas, em razão dos sérios perigos envolvidos. É certo que mais da metade dos brasileiros enquadrados nos critérios de trabalho infantil está na faixa de 16 a 17 anos. Tampouco se esperaria desses 988 mil adolescentes mais do que a conclusão do ensino médio, a possível adesão ao programa Jovem Aprendiz e trabalhos domésticos sem riscos. Para a maioria deles, no entanto, o caminho é outro: a informalidade, em geral longe da lei.

Pode-se até entender que parte das famílias vulneráveis ainda veja suas crianças e adolescentes como pequenos adultos. Por mais baixa que seja a idade, segundo essa lógica de sobrevivência, estariam aptos a trazer os rendimentos de seu trabalho para o lar. Mas não há como desculpar o poder público, a quem cabe adotar políticas públicas voltadas à melhoria das condições de vida dos mais pobres e das perspectivas futuras das atuais crianças e jovens brasileiros. Para crianças e adolescentes, não pode haver brecha para o trabalho espúrio e ilegal. Apenas o digno caminho da educação e da cidadania.

Lula detesta a realidade

O Estado de S. Paulo

OCDE mostra trajetória insustentável da dívida brasileira, mas presidente da República rejeita ‘palpite’

Mesmo com a aprovação da reforma tributária e com o novo arcabouço fiscal, dois triunfos alcançados em 2023 à custa de muito esforço em direção a um equilíbrio mínimo das contas públicas, a trajetória da dívida pública brasileira exibe viés de alta e pode levar a uma situação “claramente insustentável”. Eis o importante alerta emitido recentemente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no seu relatório bianual sobre a economia do País.

Apresentado no Ministério da Fazenda, o relatório foi classificado como “muito bom” pelo secretário de Política Econômica, Guilherme Mello, porque, em sua opinião, captou o esforço do governo para recompor a base fiscal e, assim, estabilizar a trajetória da dívida. Já o presidente Lula da Silva, na sua parolagem semanal na internet, se disse “muito irritado” com o relatório e criticou o que chamou de “palpite” da entidade, reconhecida pela seriedade de seus estudos. Logo se vê que Lula e seu Ministério da Fazenda não estão falando a mesma língua.

Lula não gostou do relatório porque a OCDE mostrou que a dívida pública não só segue elevada na comparação com outras economias emergentes, como vai beirar os 90% do PIB em pouco mais de 20 anos – e será ainda pior em caso de menor consolidação fiscal. O descumprimento das metas fiscais – desprezadas explicitamente por Lula – pode levar o País a uma trajetória insustentável da dívida, alcançando 100% já em 2037. Não custa repetir: 100% do PIB.

Uma dívida de tal tamanho tem pouco paralelo entre países emergentes. O setor público gasta algo em torno de 40% do PIB, um dos maiores patamares do planeta. Há um desconhecimento na Esplanada dos Ministérios sobre os grandes desequilíbrios que em algum momento precisarão ser encarados. E, como lembrou recentemente o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, as metas são apertadas para cumprir e, ao mesmo tempo, não deixam margem de segurança. Se com a reforma tributária houve avanços na coluna da arrecadação, o governo ainda deve muito no controle de gastos. Para não falar do mais perturbador: os sucessivos ataques lulopetistas à racionalidade do controle das contas públicas e a pregação ilusória e irresponsável de que gasto é vida.

Lula parece não ter percebido que, apesar dos recentes esforços da equipe econômica, está construindo uma herança difícil para seu sucessor – que pode ser ele mesmo, diga-se. Não é exagero pensar que o próximo mandato enfrentará a necessidade, por sobrevivência da economia, de uma agenda fiscal pesadíssima por quatro anos. Foi o que aconteceu no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. A diferença é que, em 2003, FHC entregou a Lula um superávit primário estrutural em torno de 3% do PIB. Hoje temos um déficit estrutural na casa de 1%.

Adotar políticas responsáveis e, mais do que isso, pensar em reformas estruturais são dois dos principais lenitivos para conter o descontrole da dívida. Mas, para tanto, o governo precisa conter o descontrole da sua mentalidade expansionista.

Segurança digital em risco

Correio Braziliense

Enquanto a LGPD estabeleceu princípios gerais de proteção de dados, ela não abordou as complexidades específicas das interações on-line e as particularidades das redes sociais

Promulgada em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) surgiu como uma medida para proteger as informações sensíveis das pessoas e aumentar a segurança nos ambientes digitais. Cinco anos depois, porém, não foi possível ainda perceber uma melhoria na privacidade e na confiabilidade dos serviços on-line. Pelo contrário. A sensação é de que a vulnerabilidade e os golpes só aumentaram. Que o diga a primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja, que teve as contas pessoais invadidas no último dia 11. No X, antigo Twitter, foram feitas diversas publicações de cunho ofensivo contra ela, contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

O autor da invasão foi um adolescente de 17 anos, que afirmou, em depoimento à Polícia Federal, que também acessou o e-mail e o perfil no LinkedIn de Janja. Durante uma edição do programa Conversa com o presidente, na última semana, a primeira-dama criticou o bilionário Elon Musk, proprietário do X, lamentou a demora na tomada de providências pela rede social e sugeriu que o governo precisa não só regulamentar a atuação dessas empresas, mas também o meio como elas se financiam.

O cerne do problema reside justamente na ausência de uma regulamentação específica para plataformas digitais e redes sociais. Enquanto a LGPD estabeleceu princípios gerais de proteção de dados, ela não abordou as complexidades específicas das interações on-line e as particularidades das redes sociais. O modelo atual mostra-se inadequado para lidar com os desafios únicos apresentados por essas plataformas, o que cria brechas significativas na segurança cibernética.

A situação também abre espaço para ações como a da plataforma de apostas Blaze. Ela oferece jogos de azar que se tornaram populares pela divulgação de influencers digitais, mas não tem representação nenhuma no país — ou seja, flutua acima das leis locais, cometendo um crime evidente e escapando com relativa tranquilidade de qualquer punição.

Por isso, é fundamental que o país discuta uma legislação específica para plataformas digitais e redes sociais. Essas medidas devem não apenas reforçar os princípios da LGPD, mas também adaptar-se à dinâmica e à natureza das interações digitais. Além disso, é urgente a inclusão, nesse debate, de medidas robustas de segurança cibernética, com a responsabilização das plataformas e das redes sociais pelos crimes cometidos por meio delas.

Afinal, a exposição descontrolada de dados pessoais não apenas compromete a privacidade individual, mas também alimenta um mercado clandestino de informações. A venda ilegal de dados tornou-se uma indústria lucrativa para criminosos, ampliando os riscos e agravando as consequências das invasões. Uma regulamentação direcionada pode desempenhar um papel crucial na contenção dessas práticas, impondo sanções mais severas e medidas preventivas específicas.

Outros países e territórios avançaram nesse debate. Na União Europeia, regulamentações são fiscalizadas por uma agência criada exclusivamente para monitorar o ambiente digital e exige-se, cada vez mais, transparência das big techs — como são chamadas as gigantes da tecnologia — sobre os dados coletados e eventuais vazamentos ou brechas. Estados Unidos e China também discutem avanços em suas legislações. É preciso que sociedade, governo e empresas se engajem em uma conversa necessária e urgente para formular novas regras que sejam boas para todos — principalmente para as pessoas que usam essas plataformas.



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