sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Supremo tem o dever de preservar a Lei das Estatais

O Globo

Na volta do recesso, ministros precisam rejeitar decisão que abriu brecha a indicações políticas

Quando voltarem do recesso, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) terão de enfrentar uma agenda crucial no relacionamento entre governos e empresas públicas. Ao retomar o julgamento da Lei das Estatais, o STF precisará decidir se mantém filtros na escolha de nomes para diretores e conselheiros dessas empresas, com o objetivo de preservá-las de interferência política. O ideal é que mantenha.

Está em questão, além de experiência profissional comprovada exigida do candidato a dirigente, a quarentena de três anos, cumprida por quem tenha atuado como dirigente partidário ou exercido papel de destaque em campanha eleitoral. A contestação da constitucionalidade desses pré-requisitos foi feita no Supremo pelo PCdoB, aliado do PT. Escolhido relator do processo, o ainda ministro Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, concedeu liminar em março retirando tais requisitos das condições exigidas para cargos de comando, mantendo apenas a proibição de vínculo partidário enquanto o diretor ou conselheiro estiver no cargo. A principal alegação daqueles que contestam a lei é que as exigências impostas retiram autonomia do governo e equivalem a criminalizar a atividade política. Tal alegação não faz sentido.

A decisão de Lewandowski foi vista como deferência ao governo recém-empossado, que indicara à presidência do BNDES o economista Aloizio Mercadante, coordenador da campanha vitoriosa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e à presidência da Petrobras o ex-senador Jean Paul Prates, também atuante na campanha. Ambos tomaram posse sob o argumento, depois aceito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), de que o trabalho na campanha fora voluntário, sem remuneração.

A preocupação do PT e dos partidos aliados, porém, não se resumia a esses dois casos. Eleito por pequena margem de votos, Lula é levado a negociar a governabilidade no Congresso com parlamentares de vários partidos. Cargos em estatais surgem como moeda de troca natural nessas negociações. A liminar de Lewandowski abriu espaço para abrigar nelas apaniguados dos parlamentares, sob a desculpa de facilitar entendimentos em torno da formação da base de apoio no Legislativo. Mas a fragilidade parlamentar não serve de argumento para lotear empresas públicas entre quem não tem qualificação profissional para geri-las. A lei não criminaliza nenhuma indicação política, desde que o indicado satisfaça às competências técnicas necessárias e não apresente conflitos de interesses pela atividade anterior.

O julgamento da Lei das Estatais dá ao Supremo a oportunidade de firmar um padrão ético aceitável na nomeação dos dirigentes. O placar ficou empatado em 1 a 1 com o voto do ministro André Mendonça. “Após a Lei das Estatais, (...) temos uma redução significativa de situações de riscos de corrupção”, afirmou Mendonça.

O ministro Nunes Marques pediu vista, dando tempo para todos os demais integrantes da Corte também refletirem. A fragilidade da governança torna as estatais um joguete dos políticos. A Operação Lava-Jato expôs as entranhas dos acertos resultantes. Na melhor hipótese, a gestão passa a ser ditada por interesses paroquiais. Na pior, associa-se a práticas nada republicanas. No caso da Petrobras, originou o maior esquema de corrupção desmascarado no Brasil. A racionalidade aconselha não incorrer no mesmo erro.

Navios abandonados criam problemas de ordem ambiental e de saúde pública

O Globo

Brasil não dispõe de legislação adequada para o desmanche das embarcações largadas pelo litoral

Há pouco mais de um ano, o navio cargueiro São Luiz, de 200 metros de comprimento, soltou-se de onde estava ancorado na Baía de Guanabara e foi bater na Ponte Rio-Niterói. Não houve vítimas nem maiores danos materiais, mas o episódio chamou a atenção para o cemitério de 51 embarcações abandonadas na Baía, de acordo com levantamento da Capitania dos Portos e da Polícia Militar. Ao todo, há pelo menos 122 embarcações fora de uso flutuando sem qualquer segurança no litoral brasileiro.

Os riscos já estavam claros desde a controvérsia em torno do casco do porta-aviões São Paulo, a maior embarcação da Marinha, descomissionada e enviada para desmanche num estaleiro na Turquia. Ao saber que os restos do São Paulo continham 10 toneladas de amianto e outros materiais tóxicos, o estaleiro o despachou de volta para o Brasil, onde foi proibido de atracar em qualquer porto. Restou afundá-lo a 350 quilômetros da costa de Pernambuco.

Na origem do problema está a falta de uma legislação que trate da questão. O único conjunto de regras que existe são resoluções da Agência Nacional do Petróleo (ANP) para o desmanche de plataformas de exploração e produção de óleo e gás no mar. Ajudaria se o Congresso discutisse e aprovasse o Projeto de Lei que trata da “reciclagem de embarcações”.

O desmanche das embarcações precisa ser abordado em todas as suas fases, do desmonte à destinação do que não for aproveitável. Oceanógrafos e cientistas afirmam que é imperioso garantir o descarte seguro dos resíduos tóxicos. Não se pode simplesmente jogá-los num lixão a céu aberto. Só há, segundo Fernanda Giannasi, presidente da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), três aterros sanitários no país certificados para receber materiais tóxicos, apontados no último relatório do Ministério do Trabalho. O próprio oceano não é um local adequado para destinar o lixo náutico.

O problema tende a se agravar, com grandes riscos de poluição do mar e para a população, diz o oceanógrafo David Zee, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Óleo e resíduos de metais pesados entram na cadeia alimentar, contaminam a fauna marítima e atingem o consumidor de pescado. Há também, portanto, um problema de saúde pública ligado aos navios abandonados.

O vácuo legal permite que proprietários de navios simplesmente os abandonem. A burocracia também dificulta o desmanche. O Ibama informou ao GLOBO que acompanha o descomissionamento de navios ligados à produção de petróleo e gás e que, para outros barcos, o desmonte precisa constar dos licenciamentos feitos pelos órgãos ambientais estaduais. No caso de abandono, o Ibama notifica os proprietários. A Marinha confirma que pode pedir remoção ou desmanche quando há ameaça ao meio ambiente. Mas essas determinações têm sido barradas na Justiça. Enquanto isso, o litoral brasileiro é silenciosamente envenenado por uma frota de navios pelos quais ninguém se considera responsável.

Milei sem gradualismo no megadecreto de reformas

Valor Econômico

Presidente segue usando a estratégia que empregou como candidato, radicalizando posições para ganhar apoio

O presidente Javier Milei pode não acreditar que os graves problemas da Argentina se resolvem por decreto, mas foi isso o que fez com o Decreto de Necessidade e Urgência, um calhamaço com 664 artigos e 183 páginas enviado ao Congresso. O documento diz que o país está em emergência “econômica, financeira, fiscal, previdenciária, tarifária, energética, sanitária, administrativa e social” e pede autorização para que o Executivo possa executar as medidas que propõe até 31 de dezembro de 2025, “prazo prorrogável por mais dois anos”. Embora nas linhas econômicas gerais o decreto vá na direção certa, apesar de exageros, o desejo de Milei é ter carta branca do Legislativo para dirigir o país durante todo o mandato, o que nenhum governo democrático tentou antes.

Milei segue usando a estratégia que empregou como candidato, radicalizando posições para ganhar apoio. Eleito, o apoio de que necessita é de outra ordem, o do Congresso, onde seu partido, A Liberdade Avança, é minúsculo, mas que, em aliança com macristas do Juntos pela Mudança e radicais da UCR, pode ter boas chances de aprovar medidas vitais para tirar o país da crise, especialmente enquanto tem o apoio da maioria da população (pelas pesquisas, 55%). Seguindo seus instintos, porém, está trilhando o caminho mais difícil, começando por chocar parte dos próprios aliados com a abrangência das mudanças que pretende fazer e que saem do campo econômico para abarcar a vida política e social como um todo.

Alguns pontos são especialmente sensíveis. O decreto muda o sistema eleitoral argentino, acabando com as primárias obrigatórias, alterando o financiamento eleitoral e estabelecendo um sistema distrital puro, onde se elegerá apenas um deputado (o vencedor leva tudo, típico do regime vigente nos EUA). São propostas divisivas, que colocarão boa parte dos políticos, e não só os peronistas, na oposição a seus planos e poderiam ser deixadas para depois.

Um sinalizador de problemas à frente foi a reação do presidente diante da hipótese de seu decreto ser rejeitado pelo Congresso. Milei disse que recorreria a um plebiscito, que, pela Constituição, não é vinculante, ou seja, seu resultado não pode se consubstanciar em leis, a menos que os parlamentares assim o disponham. Não contribuiu também o fato de Milei criticar a lentidão procrastinadora do Legislativo e a oposição parlamentar ao decreto como indicador de que muitos no Congresso “buscam propina”.

A aposta aparente de Milei é que o cansaço dos argentinos com a estagnação do país é tamanho que lhe permite tomar medidas radicais e ainda assim manter o apoio dos que o elegeram. É uma aposta heroica diante das dificuldades que o futuro promete. A megadesvalorização do peso pode levar a inflação para perto dos 30% em dezembro, que encerraria o ano com uma corrida de preços acima dos 200%. Apenas na semana do Natal, o preço do arroz subiu 100% e o dos alimentos em geral, 11,3% (Clarín, ontem). A questão não se resume ao fato de que os salários não acompanham a espiral de alta, mas de se, no futuro, haverá salário ou pensão. No decreto, o Executivo propõe mudar as leis trabalhistas e previdenciárias, nas quais indica que apenas os aposentados das faixas mais baixas terão reajuste.

Há pontos positivos no lado econômico do pacote. O governo propõe uma ampla moratória da dívida de empresas e pessoas físicas com o Fisco, abatendo 100% das multas e permitindo um corte de 50% dos juros em determinadas condições. Na mesma linha de buscar recursos para o Estado, estabelece nova rodada de repatriação de recursos, com isenção de impostos para quem legalizar até US$ 100 mil, e de 15% acima desta quantia.

Mais relevante, o governo alinha uma solução para que os importadores possam quitar suas dívidas com os fornecedores, atrasadas pela escassez de dólares do Banco Central. Serão emitidos bônus em dólares, que poderão ser adquiridos em pesos, com juros de 5% ao ano (em dólar). Eles poderão ser vendidos no mercado secundário e usados para abater impostos. Como a escassez de dólares persiste, as emissões estabelecerão uma fila de pagamentos ao exterior. Calcula-se que há até US$ 50 bilhões em atraso.

Milei jogou a responsabilidade para o Congresso, o que pode ter um efeito bumerangue. Uma comissão de 8 deputados e 8 senadores decidirá, em até 10 dias, sobre a admissibilidade do DNU. Se tramitar, precisará do apoio de uma das Casas - a rejeição na Câmara ou no Senado apenas significará sua aprovação. O decreto tem de ser aprovado ou rejeitado em bloco. Parlamentares da UCR querem aparar os golpes contraproducentes de Milei e apresentar uma lei espelho ao decreto, para que o Congresso analise todas as propostas, uma a uma. Essa lei tramitaria em regime de urgência, dentro das regras usuais do parlamento.

A oposição parlamentar a Milei está muda e não se associou aos protestos nas ruas convocados pelos sindicatos, o que indica que sente o grande apoio político ao rival. As ameaças e críticas de Milei ao Congresso podem, no entanto, aglutinar uma reação corporativa. Uma vitória abrirá caminho à maioria do programa liberal do presidente. Uma derrota mostrará que, com a força política que tem, só existe para ele o caminho da composição e do gradualismo.

Mundo em guerra

Folha de S. Paulo

Violência associada ao crime organizado no Brasil engrossa estatísticas macabras

Guerras entre Rússia e Ucrânia e entre Israel e Hamas, confronto no Cáucaso, ameaças da Venezuela à Guiana, tensões entre as Coreias e uma miríade de embates envolvendo atores não estatais fizeram o mundo parecer um lugar muito mais perigoso neste 2023.

Não só parecer. Para além do impressionismo de um noticiário coalhado de eventos lamentáveis, o IISS (Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres) aferiu, em seu exame anual sobre conflitos armados, a intensificação e a proliferação da violência.

]Suas contas e análises, feitas sobre bases de dados diversas, mostram que apenas no período da pesquisa (maio de 2022 a junho de 2023) houve alta de 14% no número de mortes e de 28% no de incidentes associados a ao menos 36 dos 183 conflitos ativos no mundo.

Isso sem contar, portanto, com boa parte do que a invasão russa da Ucrânia trouxe à estatística e os números avassaladores da guerra Israel-Hamas após o ataque terrorista do grupo palestino em 7 de outubro —mais de 20 mil vidas até aqui.

Ampliando a leitura, vê-se que, com a exceção de dois anos, o 1950 do início da Guerra da Coreia e o 1994 do genocídio de Ruanda, nunca houve tantas mortes em confrontos no planeta desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45).

As contendas estão no máximo da série histórica disponível, que começa em 1975, e os incidentes violentos associados a elas, também.

Se os anos recentes marcaram a volta da disputa direta entre Estados, a exemplo do que Vladimir Putin provou como se estivesse na Europa dos anos 1930, o fator mais alarmante está na violência ligada a grupos não estatais.

Segundo o IISS, eles são hoje ao menos 497 no mundo todo, influenciando a vida de 195 milhões de pessoas —a maioria na África subsaariana, que convive com a herança de divisões coloniais arbitrárias que desaguaram em embates de caráter tribal ainda mais agudos.

Mais perturbador ainda é ver o papel do Brasil, que, assim como México e outros países da América Latina, contribui generosamente para a contabilidade macabra.

Por aqui, o problema é o crime organizado ligado ao tráfico de drogas, uma endemia da morte que colheu, no ranking particular do IISS, 8.300 vidas no país no período de sua pesquisa.

Podem ser bem mais, dado que no ano fechado de 2022 o país contabilizou um total de mais de 47 mil homicídios, mas no caso o detalhe da metodologia é quase irrelevante ante a tragédia descrita.

Ocupamos o terceiro lugar mundial em número de eventos, 10,6 mil no período, e o sexto em mortes. São contribuições desoladoras para as estatísticas de um planeta que se tornou mais violento.

Atenção ao celular

Folha de S. Paulo

Aplicativo que bloqueia aparelhos é passo inicial para reprimir furtos e roubos

Em um país onde 1 milhão de telefones celulares foram roubados ou furtados no ano passado, é bem-vinda a iniciativa do governo federal de criar um aplicativo que promete aos proprietários inutilizar aparelhos extraviados em até 24 horas, inclusive em caso de perda.

Lançado no último dia 19, o programa Celular Seguro permite que o dono do smartphone ou pessoas de confiança previamente cadastradas possam acionar pela internet, de forma mais célere, o bloqueio da linha telefônica, de aplicativos de bancos e compras e de novos acessos aos dispositivos.

O modelo recebeu a adesão de boa parte do sistema bancário, empresas de telefonia e plataformas digitais. As mídias sociais, segundo o Ministério da Justiça, só devem participar em uma segunda etapa.

Até quarta (27), diz a pasta, 580 mil pessoas estavam registradas e 4.349 celulares já haviam sido bloqueados —72% por roubo ou furto.

É prematuro, por óbvio, imaginar que o programa reduzirá a atratividade desse tipo de delito. Muito menos que transformará os telefones roubados "num pedaço de metal inútil", como alardeou o secretário-executivo Ricardo Capelli.

Trata-se, isso sim, de um primeiro passo para tentar frear uma epidemia que se alastrou pelos centros urbanos nos últimos anos, também por efeito do advento do Pix, e que independe de estrato social.

O interesse dos ladrões não se limita ao valor do aparelho, mas também ao seu conteúdo virtual. No chamado "golpe do limpa tudo", criminosos descobrem senhas e fazem transações para levar todo o dinheiro da vítima —que precisa agir rápido para apagar dados bancários e similares.

Na cidade de São Paulo, epicentro nacional da atividade ilícita, o crime organizado cumpre todas as etapas: nas ruas, um grupo furta ou rouba; "técnicos" desbloqueiam senhas e fazem transferências; a quadrilha, por fim, "exporta" os aparelhos, geralmente os mais sofisticados, para países da África, onde são recomercializados.

Apenas a maturação do "Celular Seguro" poderá apontar qual o seu real alcance —a agilidade nos bloqueios, com a Anatel e parceiros, será crucial. Ao mesmo tempo, é dever das forças de segurança coibir com veemência sobretudo os esquemas mais profissionais, em larga escala, de roubos e furtos.

Quanto aos donos, resta remediar: o uso cuidadoso, sob alerta permanente, ainda é a melhor proteção num ambiente ainda inseguro.

Uma aula de Brasil

O Estado de S. Paulo

Decisão de Toffoli restaurando pagamento de penduricalho a juízes extinto em 2006 escancara como o Estado funciona maravilhosa e caprichosamente bem para poucos afortunados

No dia 19 de dezembro, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), cassou sozinho um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que tinha suspendido o pagamento de quase R$ 1 bilhão em penduricalhos a juízes federais. Trata-se do chamado Adicional por Tempo de Serviço (ATS), mais conhecido como quinquênio: o aumento automático de 5% a cada cinco anos nos contracheques dos magistrados.

O argumento do ministro Toffoli foi de que o TCU não tem competência para controlar os atos do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Com isso, magistrados que ingressaram na carreira na década de 90, por exemplo, poderão embolsar até R$ 2 milhões cada um.

A decisão de Dias Toffoli é uma aula de Brasil real. Engana-se quem pensa que o Estado brasileiro não funciona. Na defesa de interesses corporativos, a Justiça é de uma eficácia absolutamente espetacular. Não parece haver nada capaz de barrar o efetivo pagamento de benefícios a magistrados, mesmo que esses benefícios sejam manifestamente imorais e ilegais. Ao fim, o Judiciário sempre encontra um argumento para assegurar que os recursos públicos cheguem aos bolsos particulares dos ilustres membros da elite do funcionalismo público.

No caso, a razão alegada foi a suposta incompetência do TCU. É simplesmente assustador. Quando um órgão estatal tenta fazer sua parte, lembrando que deve haver um mínimo de moralidade na vida pública, logo surge uma autoridade dizendo que isso está fora das atribuições do órgão. A competência seria do CNJ e do CJF.

O peculiar é que ninguém na Justiça adverte que, apesar da competência originária do CNJ e do CJF para conter os abusos administrativos do Judiciário, esses dois órgãos são descaradamente ineficientes no cumprimento de suas atribuições. Com isso, realizase uma inversão de finalidades. Criados na reforma do Judiciário, pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004, como forma de prover um padrão mínimo de moralidade – a sociedade estava cansada de tanto escândalo e de tanto privilégio –, eles se converteram em instrumento de manutenção dessas desigualdades e desequilíbrios. Não cumprem suas funções e se, eventualmente, algum outro órgão estatal menciona a existência de uma ilegalidade, brota logo uma decisão judicial – às vezes, vinda até de ministro da mais alta Corte do País – afirmando muito soberanamente que a competência é do CNJ e do CJF. Assim, os privilégios são irretocavelmente mantidos.

Nesta aula chamada Brasil, há uma grande seção dedicada à incoerência: os rigores são caprichosamente seletivos. Ao defender a competência exclusiva do CNJ e do CJF, por exemplo, a interpretação da lei é enviesadamente literal e disfuncionalmente taxativa. Mas, em outras situações, há toda uma larguíssima tolerância. Basta ver que a ação na qual o ministro Toffoli proferiu a liminar foi ajuizada pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe), uma entidade de caráter privado que, por sua própria natureza, não tem capacidade para atuar judicialmente em nome da categoria, mas tão somente na defesa dos interesses privados de seus associados. No entanto, na promoção dos anseios da elite do funcionalismo público, nenhum empecilho formal ou burocrático deve existir. Tão nobres aspirações demandam pista livre.

Parece um mundo perfeito, de total imunidade, mas deve-se advertir. Por mais que haja tolerância e condescendência do Judiciário, por mais que a consciência cívica e moral esteja extremamente laxa nos tempos atuais, os escândalos não passam despercebidos pela sociedade – e entram para a biografia de seus partícipes. Afinal, como ignorar que o quinquênio, que contou com decisão favorável do ministro Dias Toffoli em pleno 2023, foi extinto em 2006?

Sim, no mundo maravilhoso dos juízes, privilégios de 15 anos atrás podem ressuscitar, transformando-se em cheques de R$ 2 milhões. Não há dúvida de que, para eles, se trata de um genuíno conto de fadas. Mas, para o restante do País, é uma história de terror, asfixiante e sem fim.

Milei pisa no acelerador

O Estado de S. Paulo

Algumas medidas do presidente argentino vão na direção certa, mas nada justifica a requisição de poder excepcional e a afronta à democracia, ainda mais num país que sabe o que é ditadura

O presidente da Argentina, Javier Milei, continua a cumprir rigorosamente suas promessas de campanha, na qual seu símbolo era uma motosserra. Anunciou anteontem um grande pacote de normas para virar o Estado argentino do avesso. Tem de tudo ali: forte desregulamentação da economia, mão livre para privatizar estatais, alterações significativas das leis eleitorais e recrudescimento da repressão a protestos da oposição, entre outras tantas iniciativas que mexem diretamente com a vida de cada argentino.

Para colocar as medidas em prática, no entanto, Milei reivindica poderes excepcionais para legislar sobre matérias econômicas, sociais e administrativas – e isso tudo ao longo dos quatro anos de seu mandato. Quer presidir a demolição do Estado argentino sem ter que prestar contas a ninguém, muito menos aos parlamentares no Congresso, que, segundo sua definição, são essencialmente corruptos.

Ao desregulamentar a economia por decreto, ambicionar o poder de legislar e declarar guerra a toda e qualquer oposição, o novo governante definiu que as competências e os limites do Poder Executivo, tal qual traçados pela Constituição Nacional, não lhe bastam. Sob a tortuosa lógica de que tudo pode, graças aos 55% dos votos nele depositados em novembro, Milei pôs em marcha um inequívoco projeto para invadir as atribuições do Legislativo e do Judiciário e para calar a população. A mais nova aventura autoritária na América do Sul está em curso, bem do outro lado da fronteira.

Ninguém pode dizer que Milei não avisou o que faria nem o modo como faria. O método aplicado e a letra de seus atos, porém, arruínam o equilíbrio entre os Poderes e abrem um perigoso precedente nesta fase democrática do país. Não bastasse isso, salta sua veia megalomaníaca.

Aos eleitores convictos de Milei, pode parecer coerente seu veto a qualquer forma de diálogo com o Congresso, habitado pelas “castas” ociosas e traidoras do interesse nacional, como ele insiste em qualificar os políticos em geral. Milei certamente joga com a pressão desse eleitorado sobre os legisladores de direita e de centro para aprovar integralmente o decreto de desregulamentação econômica. No entanto, sabe que os aliados do governo não passam de minoria. A oposição detém poder suficiente para rejeitar todo o conteúdo até o fim de janeiro.

A chance de Milei obter do Congresso poder de legislar até o final de seu mandato – a espinha dorsal do texto – é pequena. Apenas alguns meses já seriam uma concessão brutal e inexplicável da maioria peronista – em especial a proposta de reforma eleitoral e de composição da Câmara e a criminalização de organizadores de protestos contra o governo.

Sob o título Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, o projeto contraria os propósitos enumerados pela Casa Rosada. Longe de assegurar os benefícios da liberdade, o catatau de 351 páginas restringe protestos e castiga seus organizadores com até três anos de prisão. Contraria igualmente os princípios liberais que tanto defende em público, o que fica claro ao encaminhar ao Congresso um texto que interfere no equilíbrio entre os Poderes, afronta as instituições e arruína o direito à livre oposição.

Milei aposta no choque. Acredita que, neste momento, estarão em contraste a sua legitimidade e a do Congresso. Os votos que um e outro receberam são iguais, mas o presidente só considera válidos os seus.

Não há dúvida de que o húmus do qual brotou Milei foi o estatismo autoritário peronista, aquele que criou a “guerra cultural” na qual o atual presidente se sente tão à vontade. Também não há dúvida que muito há que ser feito para desmontar a máquina populista que conduziu a Argentina ao abismo. Várias das medidas apresentadas por Milei vão na direção certa, mas nada disso justifica a afronta ao regime democrático, ainda mais em um país que sabe muito bem o que é uma ditadura. Que as instituições argentinas consigam resistir a esse assalto.

Ética relativa

O Estado de S. Paulo

Comissão de Ética Pública não se presta a perseguir adversários ou beneficiar aliados do presidente de turno

No primeiro ano de mandato, parlamentares usaram verba pública, destinada a custear mandatos, principalmente para imprimir panfletos em plena era digital.

Como órgão consultivo da Presidência da República e dos Ministérios, a Comissão de Ética Pública, criada em 1999, é responsável, fundamentalmente, por resguardar o interesse público ao blindar o processo decisório no âmbito do Poder Executivo contra uma eventual contaminação pelos interesses privados dos ocupantes de altos cargos da administração federal.

Logo, era de esperar que a Comissão de Ética Pública, naturalmente, fosse a primeira a se colocar acima dos interesses do governo de turno, malgrado o fato de seus sete integrantes serem designados diretamente pelo presidente da República para esse relevante serviço público não remunerado. Ética, afinal, não tem – ou não deveria ter – colorações partidárias. Nos últimos anos, porém, a comissão tem sido completamente desvirtuada, convertendo-se, na prática, em instrumento de perseguição de adversários ou de concessão de sinecuras a aliados, a depender da vontade do inquilino do Palácio do Planalto.

A exemplificar essa ética relativa, digamos assim, observe-se o tratamento distinto dado pela comissão a duas situações muito semelhantes. Uma, envolvendo o ex-ministro do Meio Ambiente e hoje deputado federal Ricardo Salles (PL-SP); outra, tendo como protagonista o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União-MA). Salles foi punido pela Comissão de Ética Pública, já no governo do presidente Lula da Silva, por ter custeado voos de carreira com dinheiro público sem compromissos oficiais que justificassem os deslocamentos. A mesma comissão, no entanto, arquivou o processo contra Juscelino Filho, que, como o Estadão revelou, se utilizou de aviões da FAB para atender a compromissos particulares.

Antes o caso envolvendo os jatinhos da FAB fosse o único a macular a conduta pública de Juscelino Filho. O ministro, como se sabe, é useiro e vezeiro em utilizar meios públicos para satisfazer a seus interesses privados no exercício do cargo, numa mixórdia que, de tão corriqueira, seria risível não fosse lamentável, sobretudo pela inexplicável complacência de seu chefe, o presidente Lula.

Sem que nada de essencial distinga um caso de outro, cabe perguntar: para que serve uma comissão que se presta a avaliar o comportamento ético dos mais graduados integrantes do governo federal e não vê problema nenhum na apropriação que o ministro das Comunicações há muito faz de meios públicos para tocar sua agenda privada?

Nos estertores de seu mandato, em novembro de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro designou aliados muito próximos para integrar a comissão. O objetivo era claro: fustigar o governo que tomaria posse dali a dois meses, pois nem um nem outro tinham as qualificações para integrar a Comissão de Ética Pública. A credencial mais vistosa de ambos era a fidelidade canina ao ex-presidente.

Agora, depois de intervir na comissão para dobrá-la a seus desígnios, é Lula quem a subverte, empreendendo uma esdrúxula recalibragem dos parâmetros éticos que deveriam nortear a atuação do colegiado seja qual for a orientação ideológica do governo de turno.

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