O Globo
Fracasso no acordo Mercosul-UE, contradições
na agenda ambiental e tensão entre Venezuela e Guiana desafiam desejo de
protagonismo de Lula
Em seu primeiro ano do terceiro governo, uma
das principais preocupações de Lula foi cultivar a imagem de grande líder
global, respeitado pelos pares, que levaria alívio ao mundo pela volta do
Brasil às mesas de negociação sem o negacionismo — sanitário, climático,
institucional — de Jair Bolsonaro. De fato, a reação nas grandes democracias
foi essa — da imprensa aos chefes de Estado, passando por organizações
multilaterais e ONGs. Ainda hoje, passados quase 12 meses, o presidente
brasileiro emana essa aura de respeitabilidade e angaria boa vontade nos fóruns
de que participa, a respeito de diferentes temas.
O problema para a efetivação dessa “volta” do
Brasil ao mapa, que Lula gosta de enfatizar e até transformou em bordão, é que,
se o Brasil voltou, o mundo é outro. E a complexidade com que os líderes
mundiais têm de lidar em relação a todos os temas é exponencialmente maior que
aquela reinante quando Barack Obama dizia, em tom de camaradagem, que seu
colega brasileiro era “o cara”.
Do Mercosul às conferências do clima, não basta mais a Lula, ou a quem quer que seja, elencar boas intenções e cantar de galo, na linha de que o Brasil pode ser protagonista da transição para a economia verde ou pode mediar conflitos como o recém-instaurado na América do Sul com a ameaça da Venezuela de empreender uma investida sobre o território da Guiana.
Para ser vanguarda nas transformações e ter
voz na mediação de conflitos complexos no plano geopolítico, o Brasil precisa
afinar seus objetivos, enfrentar contradições internas e, sobretudo, assegurar
que o Itamaraty seja uma estrutura ouvida e respeitada quanto ao tom a adotar
em casos como o dos vizinhos.
Lula tem tocado em pontos absolutamente
corretos quando se refere à escalada de tensão entre Venezuela e Guiana pela
posse do território de Essequibo, a saber: não se pode cogitar a possibilidade
de uma guerra na América do Sul, e essas ameaças põem em xeque a estabilidade
no continente.
Então, o que falta? Falta uma palavra mais
assertiva condenando a investida de Nicolás Maduro sobre o território vizinho.
Ah, a disputa entre os dois países pela região é histórica? Sim. Mas tem de ser
decidida nas instâncias em que o conflito começou a ser arbitrado, e não por um
referendo unilateral da Venezuela, com todos os órgãos envolvidos controlados
pela ditadura Maduro, ainda mais com ameaça militar tendo como base apenas essa
consulta.
O risco real é que o Brasil, nessa contenda,
acabe incorrendo no mesmo erro que cometeu ao igualar as responsabilidades da
Rússia, o país invasor, e da Ucrânia, o Estado invadido e violado, na busca por
um entendimento. Portanto não basta Lula pedir a bola — baseado nessa mitologia
segundo a qual ele está predestinado a exercer o papel de guardião da paz
mundial — se não souber exatamente a jogada que pretende executar com ela.
Já falei várias vezes da contradição inerente
às negociações ambientais e climáticas, em que o Brasil posa de vestal enquanto
alimenta a petróleo o discurso do desenvolvimento econômico impulsionado pelo
Estado forte. Ela apareceu com força na COP28 e pode ser uma ameaça de
frustração na realização da COP30, em casa.
O discurso do presidente do Uruguai, Lacalle
Pou, colocando altas quantidades de água no chope da despedida da presidência
brasileira do Mercosul, mostra que nem no bloco regional, em que o Brasil
sempre teve meios de sobra para cantar de galo, é tão simples fazê-lo hoje.
A frustração do acordo com a União Europeia,
com que Lula esperava fechar com chave de ouro o período à frente do bloco e
também o primeiro ano de seu mandato, evidencia a dificuldade de se firmar num
mundo em que as relações entre países são cada vez mais intrincadas, e os
interesses não são fáceis de compreender, pois nem sempre se pautam por
questões geográficas ou de afinidade histórica.
Sei.
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