sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Vera Magalhães - O Brasil voltou, mas o mundo é outro

O Globo

Fracasso no acordo Mercosul-UE, contradições na agenda ambiental e tensão entre Venezuela e Guiana desafiam desejo de protagonismo de Lula

Em seu primeiro ano do terceiro governo, uma das principais preocupações de Lula foi cultivar a imagem de grande líder global, respeitado pelos pares, que levaria alívio ao mundo pela volta do Brasil às mesas de negociação sem o negacionismo — sanitário, climático, institucional — de Jair Bolsonaro. De fato, a reação nas grandes democracias foi essa — da imprensa aos chefes de Estado, passando por organizações multilaterais e ONGs. Ainda hoje, passados quase 12 meses, o presidente brasileiro emana essa aura de respeitabilidade e angaria boa vontade nos fóruns de que participa, a respeito de diferentes temas.

O problema para a efetivação dessa “volta” do Brasil ao mapa, que Lula gosta de enfatizar e até transformou em bordão, é que, se o Brasil voltou, o mundo é outro. E a complexidade com que os líderes mundiais têm de lidar em relação a todos os temas é exponencialmente maior que aquela reinante quando Barack Obama dizia, em tom de camaradagem, que seu colega brasileiro era “o cara”.

Do Mercosul às conferências do clima, não basta mais a Lula, ou a quem quer que seja, elencar boas intenções e cantar de galo, na linha de que o Brasil pode ser protagonista da transição para a economia verde ou pode mediar conflitos como o recém-instaurado na América do Sul com a ameaça da Venezuela de empreender uma investida sobre o território da Guiana.

Para ser vanguarda nas transformações e ter voz na mediação de conflitos complexos no plano geopolítico, o Brasil precisa afinar seus objetivos, enfrentar contradições internas e, sobretudo, assegurar que o Itamaraty seja uma estrutura ouvida e respeitada quanto ao tom a adotar em casos como o dos vizinhos.

Lula tem tocado em pontos absolutamente corretos quando se refere à escalada de tensão entre Venezuela e Guiana pela posse do território de Essequibo, a saber: não se pode cogitar a possibilidade de uma guerra na América do Sul, e essas ameaças põem em xeque a estabilidade no continente.

Então, o que falta? Falta uma palavra mais assertiva condenando a investida de Nicolás Maduro sobre o território vizinho. Ah, a disputa entre os dois países pela região é histórica? Sim. Mas tem de ser decidida nas instâncias em que o conflito começou a ser arbitrado, e não por um referendo unilateral da Venezuela, com todos os órgãos envolvidos controlados pela ditadura Maduro, ainda mais com ameaça militar tendo como base apenas essa consulta.

O risco real é que o Brasil, nessa contenda, acabe incorrendo no mesmo erro que cometeu ao igualar as responsabilidades da Rússia, o país invasor, e da Ucrânia, o Estado invadido e violado, na busca por um entendimento. Portanto não basta Lula pedir a bola — baseado nessa mitologia segundo a qual ele está predestinado a exercer o papel de guardião da paz mundial — se não souber exatamente a jogada que pretende executar com ela.

Já falei várias vezes da contradição inerente às negociações ambientais e climáticas, em que o Brasil posa de vestal enquanto alimenta a petróleo o discurso do desenvolvimento econômico impulsionado pelo Estado forte. Ela apareceu com força na COP28 e pode ser uma ameaça de frustração na realização da COP30, em casa.

O discurso do presidente do Uruguai, Lacalle Pou, colocando altas quantidades de água no chope da despedida da presidência brasileira do Mercosul, mostra que nem no bloco regional, em que o Brasil sempre teve meios de sobra para cantar de galo, é tão simples fazê-lo hoje.

A frustração do acordo com a União Europeia, com que Lula esperava fechar com chave de ouro o período à frente do bloco e também o primeiro ano de seu mandato, evidencia a dificuldade de se firmar num mundo em que as relações entre países são cada vez mais intrincadas, e os interesses não são fáceis de compreender, pois nem sempre se pautam por questões geográficas ou de afinidade histórica.