quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Luís Roberto Barroso - Pacificação, civilidade e recomeços

O Globo

Com a promulgação da Constituição, tivemos uma rearrumação geral e democrática do país

Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, um golpe de Estado destituiu João Goulart da Presidência da República. Golpe, porque esse é o nome que se dá em ciência política e em teoria constitucional para as situações em que o chefe de governo é afastado por um procedimento que não é o previsto na Constituição. As palavras precisam ser preservadas em seus sentidos mínimos.

É certo, também, que a quebra da legalidade constitucional contou com o apoio de inúmeros setores da sociedade, como boa parte das classes empresariais, dos produtores rurais, da classe média e da Igreja, assim como dos militares e da imprensa, além dos Estados Unidos. Cada um desses atores com seus temores próprios.

Ali começou uma longa noite institucional. Passaram-se 25 anos até que houvesse uma eleição presidencial pelo voto popular. No período, tivemos uma longa sequência de atos institucionais, que exprimiam a legalidade paralela e ditatorial do regime militar. Com eles, os partidos políticos existentes foram extintos, as eleições passaram a ser indiretas, o Congresso foi fechado diversas vezes, parlamentares foram cassados, bem como professores e servidores públicos aposentados compulsoriamente. Muita gente foi para o exílio. Nas sombras, também vieram a tortura de adversários políticos e a censura.

Merval Pereira - A guerra continua

Valor Econômico

Embora tenha se mostrado de grande valia na defesa da democracia, o Supremo tem extrapolado em algumas medidas adotadas em decorrência da investigação sobre fake news e milícias digitais

A maioria conservadora do Congresso revoltou-se contra o que considera serem medidas esquerdistas aprovadas recentemente pelo Supremo, como a derrubada da tentativa de impor como marco temporal para demarcação das terras indígenas a Constituição de 1988, ou temas sensíveis já encaminhados favoravelmente, como a liberalidade quanto ao porte de maconha por um usuário ou a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, que já tem o voto da ministra Rosa Weber, recém-saída da presidência do STF.

Prevendo possível retaliação do Congresso, vindo em forma de diversos projetos aprovados em comissões, os ministros do Supremo anteciparam-se e decidiram no início do ano atacar alguns pontos frágeis, fazendo alterações no regimento interno que representam avanços, reforçando a decisão coletiva em detrimento de medidas monocráticas. Tomaram decisões importantes, à frente de muitas propostas dos congressistas.

Medidas cautelares de natureza cível ou penal devem ser submetidas ao plenário ou às turmas em casos envolvendo “a proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação” ou para “garantir a eficácia da ulterior decisão da causa”. Em caso de urgência, o relator pode decidir sozinho, mas deve submeter sua decisão imediatamente ao colegiado para referendo. A medida precisa ser reavaliada pelo relator ou pelo colegiado competente a cada 90 dias.

Malu Gaspar - A guinada de Pacheco

O Globo

Davi Alcolumbre (União-AP) deve ter batido algum recorde ao ler e aprovar em 40 segundos, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a emenda que limita o poder dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de proferir decisões monocráticas. O texto, que ainda precisa ser submetido ao plenário, proíbe as liminares sobre assuntos de interesse coletivo ou que anulem atos dos presidentes da República e do Parlamento.

Se não foi campeão de velocidade, o avanço a jato dessa emenda, que já tinha sido rejeitada em 2019, estabeleceu um novo patamar de tensão entre duas instituições que até outro dia viviam em harmonia.

Numa guinada que muitos ainda tentam explicar, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que antes matava no peito até pedidos de impeachment de ministros, tornou-se algoz do Supremo.

Maria do Rosário - ‘Afrontá-la, nunca’

O Globo

A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas

Celebramos hoje os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Uma oportunidade para a renovação dos compromissos do Estado e da sociedade brasileira com a democracia. A Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1987 como parte do processo de transição, aprovou uma Carta capaz de espelhar a nação que buscava o amanhecer da liberdade de um Brasil desenhado com todas as cores da aquarela.

Mesmo os segmentos políticos que apontaram insuficiências na Constituinte travaram embates fortes e fizeram críticas políticas a seus próprios limites, como no tema relacionado às Forças Armadas e segurança pública, sem jamais comprometer seu processo. Ainda é ela a melhor referência de abertura e transparência do Congresso e dos demais Poderes para com a nação. Resgatá-la e valorizá-la é reforçar que o caminho da unidade entre os democratas é irrenunciável.

Ainda assim, nossa Constituição, uma das mais avançadas do mundo, que tem como premissa a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, já foi objeto de 131 emendas que demonstram nítida intenção reformadora dos constituintes derivados, mesmo antes da completa regulamentação e efetivação dos princípios nela consagrados.

Maria Cristina Fernandes - Pau que bate em Tarcísio baterá em Lula

Valor Econômico

Modelo de concessões paulista não se distingue daquele que vai reger o PAC

A greve dos transportes em São Paulo foi tratada como uma bofetada no modelo privatista do governador Tarcísio de Freitas. Os pugilistas são da extrema-esquerda, mas partidários do governo Luiz Inácio Lula da Silva vibraram com o que consideraram um emparedamento do seu maior oposicionista.

É causa de tormenta diária o transporte público escasso, lento e lotado de uma cidade em que as pessoas gastam 2,5 horas por dia para se deslocar. Isso não se discute. A dúvida surge quando a greve se volta contra o modelo de gestão do transporte público.

Trata-se de modelo crescentemente concedido à iniciativa privada por longos contratos de 20 anos ou mais. Segue a mesma lógica estabelecida no programa de concessões e Parcerias Público Privadas que acaba de ser lançado pelo governo federal para a reativação do PAC.

Maria Hermínia Tavares* - Uma causa da humanidade

Folha de S. Paulo

Defesa de direitos humanos não é causa exclusiva dos progressistas

Em vários países, as esquerdas debatem como acomodar seu tradicional compromisso com as lutas pela redistribuição dos frutos do trabalho coletivo com a chamada pauta identitária, que transporta a questão da equidade para outras esferas: modelos de família, relações raciais, atitudes diante de diferentes gêneros, etnias e culturas.

Sobretudo nos Estados Unidos, a discussão é ácida. Prova disso são os recentes livros da filósofa Susan Neiman, "Left Is not Woke" (a esquerda não é identitária, em tradução livre), e do cientista político Yascha Mounk, "The Identity Trap" (a armadilha da identidade).

Assim como o economista francês Thomas Piketty fala de uma esquerda brâmane, equiparando-a à casta dos sacerdotes na antiga Índia, ambos os autores localizam a origem da agenda identitária na elite universitária.

Bruno Boghossian - Investida do Congresso contra STF tem o mau cheiro de uma disputa de poder

Folha de S. Paulo

Pacote foi contaminado por briga pelo comando do Senado e pelo temor de uma aliança entre o tribunal e Lula

A ideia de restringir a atuação de ministros do STF está longe de ser um tabu. O tribunal deu um passo nessa direção no ano passado, quando estabeleceu prazos para pedidos de vista e decisões individuais. Em 42 segundos, o Senado conseguiu impregnar uma discussão limpa com um mau cheiro inconfundível.

A Comissão de Constituição e Justiça aprovou em votação relâmpago uma proposta para limitar decisões monocráticas e determinar que pedidos de vista não podem ser feitos por um único ministro. Os parlamentares tiveram pressa porque estão mais interessados em passar recados do que em aprimorar o tribunal.

Cezar Miola* - Aos 35 anos, Constituição é o lastro da nossa democracia

Folha de S. Paulo

Não foi só nos últimos anos que a Carta esteve em xeque

Lançado há alguns meses, o documentário "O Repórter do Poder" retrata a vida de Jorge Bastos Moreno, um dos mais reconhecidos jornalistas que já passaram por Brasília. O filme tem entre seus méritos reviver para as novas gerações o clima no país no final dos anos 1980, momento da promulgação da Constituição da República. Havia um ar de esperança e expectativa que aparece nitidamente no discurso de Ulysses Guimarães no Congresso, naquele dia 5 de outubro de 1988. A Carta Magna completa agora 35 anos sob outro ambiente político, mas mesmo assim mantém-se firme como lastro da democracia brasileira.

Em diversos momentos, a Constituição foi submetida a ataques. Por vezes, a atmosfera beligerante, expressa no embate entre divisões partidárias e ideológicas. Nas ruas e nos plenários, pareceu que iria transbordar. Até mesmo as mais altas esferas da República estiveram em intenso tensionamento. Mas o país soube caminhar dentro da legalidade constitucional, e esta demarca os limites a quem apostou em outra direção.

Vinicius Torres Freire - Ataque do Congresso ao STF é parte do liquidificador histórico do Brasil recente

Folha de S. Paulo

Ofensiva pode ser outra das mudanças que sacolejam o país na década da depressão

O motivo imediato da ofensiva do Congresso contra o Supremo foi a decisão da corte de dar a indígenas mais direitos sobre as terras que ocuparam e de tratar de aborto e maconha. O ataque é uma das tantas críticas a uma década de exorbitâncias do STF —críticas de interesse, mérito e qualidade variados.

Caso a ofensiva vingue, será outro dos rearranjos, reformas e depredações do sacolejo institucional e social incessante que ocorre desde 2013, na década da depressão econômica.

Não dá para dizer que o Brasil foi virado do avesso. A casca grossa da desigualdade, da violência e da incapacidade de crescer continua evidente. Depois de tantos transplantes e implantes, o país parece um Frankenstein que passou por harmonização facial, com alguns órgãos novos. É muita mudança para resultados até agora sinistros ou sem efeito maior nas condições de vida e na civilização.

Conrado Hübner Mendes* - 35 anos de ambição democrática

Folha de S. Paulo

A Constituição brasileira está sob ameaça dos gabinetes, dos porões e da hermenêutica

Aniversários da Constituição de 1988 costumam ter, entre juristas, um certo tom triunfalista. Mesmo que reconheçam frustrações, balanços quinquenais raramente deixavam de enfatizar uma linha de progresso no desenvolvimento constitucional do país. Sua longevidade (a terceira maior da nossa história) seria fruto da virtude da resiliência e do compromisso com o Estado de Direito.

Essas convicções, se um dia fizeram sentido, estão abaladas neste 5 de outubro de 2023. O senso de retrocesso e de risco de ruptura cresceram na última década. Até entre juristas pollyanna, que olham para o mundo real e só enxergam avanços, o cenário já não está tão cor-de-rosa. Mesmo com a derrota de Bolsonaro e a interrupção momentânea do nonsense inumano e diário, suas práticas fincaram raízes na política.

William Waack - O jogo da Suprema Corte

O Estado de S. Paulo

Está em definição o papel político amplo do Supremo

Discreta e calada, a ex-presidente do STF Rosa Weber também não resistiu à ambição de colocar seu nome na História. Vem, em boa parte, desse impulso individual a decisão de pautar o voto do aborto no Supremo, levando a severas consequências políticas.

As deliberações do STF sobre aborto, marco temporal e drogas (entre outras) expuseram um conflito profundo entre os Poderes, especialmente entre Judiciário e Legislativo. Há dois níveis entrelaçados nessa disputa.

O nível “imediato” é o da reiterada acusação, por parte do Congresso, de que o STF extrapola suas funções e está “legislando” em matérias de competência dos parlamentares. As ameaças de restringir mandatos dos ministros do

STF e alterar suas decisões no Congresso são o “troco” dado no dia a dia político.

Luiz Carlos Azedo - Tensão entre os Poderes nos 35 anos da Constituição de 1988

Correio Braziliense

A decisão relâmpago da CCJ foi um recado direto de Alcolumbre de que pretende peitar o STF caso seja eleito presidente do Senado

A Praça dos Três Poderes encarna a representação arquitetônica da independência e da harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, essência da República, segundo a Constituição de 1988. Teoricamente. Lúcio Costa e Oscar Niemeyer projetaram os edifícios-sede dos Três Poderes republicanos para formar um triângulo equilátero. Ao Sul, o Supremo Tribunal Federal (STF); ao Norte, o Palácio do Planalto; a Oeste, o Congresso Nacional.

Segundo depoimento de próprio Niemeyer, o Congresso é sua obra predileta. Não por acaso, apesar da beleza dos demais palácios, é o ícone arquitetônico do poder político no país. A geografia na Esplanada, na qual a Praça dos Três Poderes é o vértice da nossa democracia representativa, traduz a ideia de Niemeyer de que o Parlamento é mais importante do que o Executivo e o Judiciário. Por isso, ocupa o centro do conjunto arquitetônico.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

35 anos de Constituição e democracia

O Globo

Carta que garantiu o período democrático mais longevo no Brasil deverá continuar a iluminar o país

‘Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados.’ A frase de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso proferido em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição, não poderia ter sido mais realista ou mais profética. Nossa lei fundamental, que agora completa 35 anos, serviu de alicerce ao período democrático mais longo na História do país. Criada depois do fim da ditadura militar, estabeleceu regras, mecanismos e instituições que têm garantido a democracia. E resistiu com louvor a seu maior desafio, a tentativa de golpe de Estado que culminou no ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

A ênfase do texto constitucional nos direitos do cidadão, especialmente em saúde, educação e na área social, sustentou uma transformação. Ao longo de três décadas e meia, a expectativa de vida saltou de 65 para 73,6 anos, mais rápido que a média mundial. Em 1988, um quinto da população acima de 15 anos era analfabeta, e 5 milhões com menos de 14 estavam fora da escola. Hoje o analfabetismo está em 5,6%, e os sem escola não chegam a 250 mil. Há muito a fazer ainda no campo social, mas o avanço é inegável.

A principal conquista foi a consolidação da democracia expressa nos direitos fundamentais: igualdade perante a lei, voto secreto e universal, liberdade de expressão, associação e participação política, além de todas as demais garantias gravadas em cláusulas pétreas.

A Constituição foi elaborada num momento ímpar, por um grupo que incluía notáveis como Affonso Arinos, Delfim Netto, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jarbas Passarinho, José Serra, Luiz Inácio Lula da Silva, Mário Covas, Nelson Jobim, Nélson Carneiro, Roberto Campos, Roberto Freire ou o próprio Ulysses. O principal desafio era erguer um arcabouço institucional duradouro depois da ditadura. Nisso, cada novo aniversário da Carta é prova de seu êxito.