sábado, 30 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

MP que acaba com desoneração desrespeita Congresso

O Globo

Medida desafia decisão tomada e reiterada pelos parlamentares em defesa da geração de empregos

Está certo o Congresso ao considerar uma afronta do Executivo a Medida Provisória (MP) que, entre outras providências destinadas a ampliar a arrecadação, acaba com o regime de desoneração da folha salarial vigente para 17 setores da economia, responsáveis por mais de 9 milhões de empregos. Depois de debatida e aprovada em outubro, a prorrogação por quatro anos da desoneração foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O Congresso derrubou o veto presidencial, e ontem a lei foi publicada no Diário Oficial da União. São, portanto, mais que justificados os protestos despertados pela MP, que reonera a folha a partir de 1º de abril de 2024. Até o Congresso votá-la (no prazo de 120 dias), a programação orçamentária e os investimentos das empresas afetadas estarão prejudicados.

Em vez de atropelar o Parlamento, o Executivo deveria ter apresentado suas sugestões por meio de projeto de lei, permitindo amplo debate. A ânsia arrecadatória para tentar zerar o déficit das contas públicas no ano que vem não justifica desafiar decisão recente e soberana da maioria dos deputados e senadores em prol da criação de empregos. Na Câmara, a derrubada do veto recebeu 378 votos favoráveis e apenas 78 contrários. No Senado, a vantagem foi de 60 a 13. Por isso não causou surpresa a reação crítica dos congressistas à afronta do governo.

Oscar Vilhena Vieira* - Segurança pública: prioridade para 2024

Folha de S. Paulo

Reduzir a violência é não apenas um imperativo moral, mas também uma condição para a prosperidade econômica

Em 2023 a democracia foi salva e a economia parece estar entrando nos eixos. A agenda climática foi retomada, assim como as principais políticas sociais. Feitos nada triviais para um governo minoritário e recebido com grande desconfiança pelo mercado.

O centrão, como era de se esperar, demonstrou-se mais leal aos seus interesses pragmáticos que à agenda obscurantista dos antigos habitantes da Esplanada (com exceções). O governo soube alinhar suas prioridades às ambições da maioria parlamentar. Tudo isso, evidentemente, ao régio custo de emendas. O fato, porém, é que a coisa andou. O governo governou.

Dora Kramer - 2023 foi ruim, mas foi bom

Folha de S. Paulo

Entre perdas e ganhos, primeiro ano de Lula 3 termina com saldo positivo

O ano que agora termina foi ruim na avaliação de alguns e bom na opinião de outros. Tudo depende da comparação. Exemplo: os desacertos verbais de Luiz Inácio da Silva ficaram deglutíveis face as vulgaridades do antecessor.

No entanto, apesar da expectativa de um "efeito alívio" duradouro, a avaliação positiva do novo governo oscilou entre a estabilidade e a queda.

As pesquisas indicaram insatisfação com a ausência do presidente devido a prioridade dada à reinserção internacional do Brasil. Também apontaram visão negativa quanto aos problemas na segurança pública.

Hélio Schwartsman - Direita estética

Folha de S. Paulo

Jovens, que eram público quase cativo da esquerda, flertam com a extrema direita

Os jovens estão ficando de direita? Depende. No Brasil, os mais jovens deram bem mais votos a Lula do que a Bolsonaro, mas, na vizinha Argentina, o apoio dos mais novos foi decisivo para eleger Milei. Nos EUA, a ala trumpista do Partido Republicano tem conseguido adeptos entre jovens negros e latinos, dois grupos demográficos que eram quase que hegemonicamente democratas.

Se olharmos para outros países, como França, Alemanha, Espanha, também encontraremos jovens entre os apoiadores de partidos de extrema direita, que vêm crescendo. Não dá obviamente para dizer que a maioria dos jovens aderiu ao populismo de direita, mas, se considerarmos que esse era um público quase cativo da esquerda do pós-guerra para cá, a tendência é inquietante.

Demétrio Magnoli - A fraude da raça

Folha de S. Paulo

Censo retrata como pessoas se veem ou querem ser vistas

O Censo de 2022 constatou que a parcela de pardos (45,3%) ultrapassou a de brancos (43,5%) e, ainda, que a de pretos atingiu 10,2%. Daí, a militância identitária, que inclui o "jornalismo identitário", extraiu diversas conclusões –todas equivocadas.

1) "Oh! Que novidade histórica!"

Novidade nenhuma: continuidade de tendências verificadas desde o Censo 2000. Há um quarto de século aumenta a proporção de pardos e pretos, enquanto decresce a proporção de brancos.

2) "Agora sim, os brasileiros assumem sua verdadeira identidade."

Só quem, no século 21, insiste em acreditar nas teorias do "racismo científico" do século 19 ousa mencionar uma "verdadeira" identidade racial. Raças humanas não existem. No plano racial, não há identidade "verdadeira" (ou "falsa"). No censo, as pessoas autodeclaram sua cor da pele. Dele, emana um retrato de como elas se veem –ou querem ser vistas.

Carlos Alberto Sardenberg - As previsões mudam. Ainda bem

O Globo

No início deste ano, o clima mundial era de inflação alta, com juros subindo, situação nada propícia para o crescimento

O presidente Lula manifesta especial satisfação em atacar ou zombar do mercado financeiro, quando este erra previsões. Neste ano ofereceu boas oportunidades.

Em janeiro, o mercado esperava, para o ano, inflação de 5,36% e crescimento do PIB de 0,78%. Sobre a inflação, ainda não temos os números finais, mas deverá ficar na casa dos 4,5%. No caso do PIB, o desvio será bem maior. Saberemos o resultado lá por abril, mas já se dá como certo, no próprio mercado, que terá crescido em torno de 3%.

Para Lula e Haddad, não há dúvida. O mercado apostava no desastre.

Será?

A questão é saber o que explica os desvios. Para isso, é preciso entender como são feitas as previsões. Elas aparecem semanalmente no site do Banco Central, no Relatório de Mercado, também conhecido como Boletim Focus. Fazem parte do regime de metas de inflação.

Pablo Ortellado - O projeto autoritário de Milei

O Globo

Presidente tem empregado medidas duras contra protestos de rua

Na última quarta-feira, o presidente da Argentina, Javier Milei, enviou ao Congresso um ambicioso pacote de medidas que, pela extensão, impacto, regime de tramitação e conteúdo, só pode ser qualificado como autoritário. O Projeto de Lei tem 351 páginas e 664 artigos, modifica mais de 50 leis em vigor, e o presidente espera que seja discutido e aprovado até 25 de janeiro.

O projeto é tão abrangente que é difícil selecionar destaques. Parte dele reúne medidas que, ainda que discutíveis, são perfeitamente democráticas, como as privatizações de estatais (incluindo Aerolíneas Argentinas, Correios, Banco de la Nación e a petrolífera YPF), a regulamentação do mercado de carbono e a criação de um exame nacional do ensino médio (como nosso Enem). Em circunstâncias normais, essas medidas tramitariam em separado, permitindo apreciação cuidadosa pelo Congresso, já que o impacto de cada uma é grande. O pacote, porém, as coloca todas num único Projeto de Lei agregador, apelidado de Lei Omnibus, com apreciação extremamente acelerada, que o governo espera que se conclua em apenas um mês.

Eduardo Affonso - Depende do contexto

O Globo

A ditadura venezuelana, possivelmente também a nicaraguense, a chinesa, a iraniana, pode ser só uma narrativa

Este foi o ano da relativização geral (não confundir com a teoria desenvolvida por Einstein). Seu pressuposto é não haver referencial ético absoluto — ou, parafraseando Pirandello, o primado do “assim é (se lhe convém)”.

A mais completa tradução de 2023 pode ter sido dada por Liz Magill (então presidente da Universidade da Pensilvânia), Claudine Gay (presidente da Universidade Harvard) e Sally Kornbluth (reitora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, MIT). Questionadas se manifestações pedindo a morte de judeus violariam as regras de bullying e assédio em seus campi, as três tergiversaram: “Depende do contexto”. Haveria providências se o discurso antissemita fosse “generalizado e severo”. Se os militantes deixassem de apenas clamar pela extinção de um povo e partissem para as vias de fato.

Carlos Góes - O velho Mercosul no ano novo

O Globo

No ano em que completará 30 anos, o Senhor Mercosul parece se aproximar de um ponto de tensão

Ano que vem o Mercosul completará 30 anos. Deixa de ser jovem. O bloco comercial tem sido atacado e enfrenta desafios de dentro e de fora da região. Nesse cenário, fica a pergunta: o Mercosul tem futuro?

Antes de mais nada, um pouco de história.

O Mercosul entrou em vigor em 1994, fruto do Tratado de Assunção, assinado três anos antes por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. A ideia do bloco era a “ampliação de seus mercados nacionais, através da integração” para acelerar o “desenvolvimento econômico com justiça social”.

A ideia iria além da economia: reduzindo barreiras à circulação de bens, pessoas, serviços e investimentos, passando pela coordenação de políticas macroeconômicas e regulatórias — exatamente como tinha sido feito na Europa alguns anos antes.

Bolívar Lamounier* - Esse Brasil lindo e trigueiro 2

O Estado de S. Paulo

Os identitaristas embarcaram no que a consagrada fórmula francesa designa como ‘une journée des dupes’, ou seja, uma jornada de otários

Retomo hoje o título de meu artigo de 26/8/2023 para voltar a falar sobre Ary Barroso. Em sua maravilhosa Aquarela do Brasil, de 1938, ele fez questão de frisar que o Brasil, além de lindo, era trigueiro, ou seja, pardo, moreno. Nem só branco, nem só preto. Ao juntar os dois adjetivos, lindo e trigueiro, ele quis dizer que somos um país lindo porque somos também um país trigueiro. E disse também, implicitamente, que só um rematado idiota vê a miscigenação como um mal. Uma rápida olhada pelo mundo afora basta para nos convencermos de que países divididos por etnias irreconciliáveis, religiões hostis entre si e mesmo divisões linguísticas podem dar ensejo a graves conflitos. Um país trigueiro reduz tais conflitos ao mínimo possível. Daí minha dificuldade de compreender que alguém possa pôr em dúvida os benefícios da miscigenação.

Mas, pasmem, há quem afirme que a miscigenação é um mal. São os chamados “identitários”. Segundo essa escola de pensamento, ou, para sermos exatos, segundo essa seita, boas são as sociedades nas quais cada grupo confere à sua identidade uma aura de quase santidade, tratando de se diferenciar e se distanciar de outros grupos. Cada um no seu quadrado. Claro, a ideia de identidade não deve ser banalizada. No limite, cada indivíduo tem a sua. Mas os “identitários” entendem que divisões étnicas não se devem mesclar. Abominam toda miscigenação entre elas. “Cada um no seu quadrado” significa conferir maior valor ao que nos separa do que ao que nos une. Por quê? Qual é o fundamento dessa tontice? Por que rejeitar a identidade nacional, vale dizer, a identidade de todo o País, que a duras penas conseguimos construir, não obstante a pobreza e as desigualdades que afligem mais da metade da população, a escassez de oportunidades e a ruindade de nosso sistema de ensino? Bem ou mal, com todas essas mazelas, constituímos uma identidade abrangente, como povo e como nação.

Marcus Pestana* - As perspectivas brasileiras para 2024

A realidade não obedece a lógica do calendário gregoriano. A não ser que acreditemos na genial ideia de cortar o tempo em fatias, industrializando a esperança, registrada por Carlos Drummond. Como se a vida começasse outra vez, com número novo e a vontade de acreditar que tudo será diferente. Os ritos, simbolismos, as datas marcantes desempenham papel essencial na vida humana. Impulsionam fantasias, sonhos e atitudes.

O Brasil sai de 2023 com algumas boas notícias. A inflação declinou. Os juros caíram. A balança comercial voltou a bater recorde. O mercado de trabalho está aquecido e o desemprego relativamente baixo. A economia cresceu bem acima dos 0,8% projetados por especialistas e pelo mercado, surpreendendo com um incremento no PIB de 3,0%. A rede de proteção social foi reforçada com a volta da política de valorização do salário mínimo, que repercute no piso do INSS e no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que assiste aos idosos e às pessoas com deficiência sem cobertura previdenciária. O Bolsa Família foi reforçado. A temperatura da polarização política cedeu alguns graus.