sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

André Roncaglia* - A paranoia liberal contra o BNDES

Folha de S. Paulo

Análise de políticas públicas requer mais racionalidade e transparência

Em seu mais recente artigo para a Folha, meu colega Marcos Mendes voltou a investir contra o BNDES, lançando uma suspeição indevida sobre a instituição. Para o bem do debate público, contesto algumas de suas afirmações a seguir.

Em primeiro lugar e mais grave, o uso do termo "granaduto" lança mão do glossário lava-jatista para associar o banco a práticas opacas e até ilegais. Evocar a imaginária caixa-preta do BNDES contrasta com o reconhecimento do banco, pelo TCU e pela CGU, como a instituição pública mais transparente do Brasil.

Segundo, quanto aos impactos do BNDES na economia brasileira entre 2008 e 2014, o relatório do CMAP (Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas) faz uma avaliação preliminar de custo e benefício dos financiamentos do BNDES entre 2008 e 2014.

O viés de seleção aparece na concentração da amostra: de um total de 406.326 empresas apoiadas pelo banco no período 2011-2020, consideram-se apenas 653 grandes empresas com capital aberto, cujas operações com o BNDES representaram 12% a 33% dos desembolsos anuais.

A revisão da literatura sobre o tema feita por Barboza et al (2023) mostra que o efeito dos desembolsos do BNDES sobre investimento, emprego e exportações é positivo e especialmente grande sobre as MPME.

Logo, ao minimizar o peso das micro, pequenas e médias empresas (MPME), a generalidade do estudo do CMAP fica comprometida.

Ademais, a leitura cuidadosa do relatório não sustenta a conclusão subjetiva de terem sido "pífios" os resultados da atuação do BNDES. A partir de múltiplos métodos empregados pelos trabalhos analisados, os efeitos positivos do BNDES têm importantes impactos macroeconômicos e benefícios para a sociedade, como a redução do desmatamento.

Sobre a "fragilidade na governança" do banco, os "40% das operações analisadas [que] não se enquadravam nas normas internas do BNDES" dizem respeito a sete operações (págs. 58 e 59). É possível inferir tal fragilidade com base em uma amostra de 18 operações?

Terceiro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FDNIT) é um fundo privado —e não público—, o que elimina, por si só, as restrições legais apontadas por Mendes. É, de fato, uma boa prática que um benefício fiscal exija contrapartidas que sirvam ao país.

Nesse sentido, o programa Mover corretamente condiciona o benefício tributário à realização de gasto com inovação pela empresa (o valor global do programa se limita a R$ 19 bilhões até 2028 —MP 1.205/2023).

Já mencionei aqui que a criação das Letras de Crédito ao Desenvolvimento (LCD) se inspira em exemplos bem-sucedidos de outros países —como é o caso do KfW, na Alemanha— para viabilizar funding mais barato para o desenvolvimento sustentável; também segue a lógica adotada para apoiar os setores agropecuário (LCA) e imobiliário (LCI) —com isenção tributária que parece não incomodar os liberais. Se o Congresso autorizar, o BNDES poderá emitir neste ano R$ 10 bilhões em LCDs, ou seja, 0,7% do R$ 1,4 trilhão de dívida que o Tesouro prevê rolar em 2024.

Os dois instrumentos mencionados, quando somados, não chegam a R$ 70 bilhões (em recursos privados) até 2028. Por isso, beira a paranoia imaginar que a LCD do BNDES obstará o financiamento interno da União ou que o FNDIT seja a antessala do descontrole fiscal.

Governos no mundo inteiro estão apostando em políticas públicas de industrialização. A revista The Economist admitiu ser essa a receita para enriquecer no século 21. A atuação do BNDES segue essa linha, com reconhecidas transparência e prestação de contas à sociedade.

A análise de políticas públicas requer mais racionalidade e transparência. Selecionar evidências do BNDES do passado para minar a atual agenda construtiva do banco interdita um debate que pode ser frutífero.

Desta vez, pode ser diferente.

*Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

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