Valor Econômico
Aumento de protagonismo dos parlamentares no
Orçamento abala as bases de funcionamento de nosso sistema político
Quando a Assembleia Nacional Constituinte,
reunida em 1987, sinalizava que seus membros iriam adotar um sistema político
com as mesmas características herdadas do final da ditadura, o cientista
político Sergio Abranches pressentiu que o resultado não seria bom.
Na sua visão, o modelo de eleição
proporcional de deputados estimularia a proliferação de partidos e reforçaria o
poder das bancadas dos Estados. Além disso, o federalismo que emergia da nova
Constituição tinha um protagonismo forte da União, tanto em arrecadação
tributária quanto no poder de desenhar políticas públicas.
Como resultado, os presidentes teriam que lidar com uma base fragmentada em muitos partidos e ainda deveriam atender a demandas por recursos vindas de cada Estado. A consequência, Abranches imaginou, seria um sistema propenso a crises, dadas as dificuldades que o presidente teria para formar e manter uma coalizão que, em função das condições institucionais criadas, seria excessivamente heterogênea em termos ideológicos e regionais.
Alguns anos depois, os pesquisadores Argelina
Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi resolveram compilar os dados de votações
para testar o funcionamento do “presidencialismo de coalizão” batizado por
Abranches. Ao coletar o posicionamento de partidos e parlamentares nas votações
de interesse do presidente da República após a promulgação da Constituição, os
professores da USP constataram que, ao contrário do que se imaginava, o sistema
brasileiro funcionava bem, com uma alta disciplina partidária e taxas de sucesso
elevadas obtidas pelos presidentes da República.
A explicação de Figueiredo e Limongi para a
eficiência do presidencialismo de coalizão brasileiro também partia de raízes
institucionais. O chefe do Poder Executivo possuía instrumentos poderosos no
jogo político, como a prerrogativa de elaborar e executar o orçamento e a
possibilidade de editar medidas provisórias e de requer urgência para
determinadas matérias de seu interesse; além, é claro, da capacidade de nomear
os ocupantes de milhares de cargos em órgãos e estatais federais.
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, os
líderes dos maiores partidos também dispunham das suas armas, controlando o
posicionamento de seus correligionários com a indicação para postos-chave na
legislatura, como relatorias de projetos importantes, e agraciando os mais
fiéis com cotas generosas de recursos arrecadados de empresas para financiar
suas reeleições.
Argelina Figueiredo e Fernando Limongi
demonstraram que, com presidentes fortes e líderes partidários igualmente
poderosos, as chances de se chegar a um acordo eram muito maiores - e isso se
media pelo elevado percentual de adesão ao governo.
A tese apresentada por Abranches, contudo,
não era incompatível com as evidências apresentadas por Figueiredo e Limongi.
Em inúmeras vezes os presidentes se viram diante de crises que paralisaram seus
mandatos, e ao longo do tempo o custo da aprovação de suas agendas ficou mais
caro, não raro se degenerando em corrupção.
Mais recentemente, porém, inovações
institucionais mudaram o equilíbrio do jogo tão bem descrito por Figueiredo e
Limongi, assim como agravaram o potencial de crises previsto por Abranches.
Lançado no ano passado, o livro “Emendas
Parlamentares e o Processo Orçamentário no Presidencialismo de Coalizão”, de
Rodrigo Oliveira de Faria, já nasceu como a referência básica para quem quiser
entender o histórico e as implicações da ampliação da ingerência de deputados e
senadores na elaboração e - aqui entra o fator decisivo para a mudança do jogo
- na execução do orçamento público.
Valendo-se de longa experiência no Tribunal
de Contas do Município de São Paulo e no governo federal, a obra é baseada na
tese de doutorado defendida pelo autor na Faculdade de Direito da USP. De forma
didática e com linguagem acessível, Faria descreve em minúcias como os
parlamentares vêm ampliando seu poder sobre orçamento, alterando o balanço de
forças no cabo de guerra com o governo federal.
Embora comumente se atribua a origem desse
processo a Eduardo Cunha, Faria argumenta que o ímpeto inicial começou na
gestão de Henrique Alves na presidência da Câmara, em 2013. O autor demonstra
que todas as medidas tomadas nos últimos anos para tornar impositivas as
emendas parlamentares percorrem uma trajetória que envolve a marcação
orçamentária dos desejos dos parlamentares, a determinação pelas leis de
diretrizes orçamentárias que parte delas seja paga pelo governo e, finalmente,
a consagração na Constituição de um volume específico de recursos a ser
obrigatoriamente cumprido pelo Poder Executivo.
Faria demonstra que, em 2023, o total de
emendas individuais, coletivas e de relator chegou a 23,84% do total de
despesas que o governo federal dispõe para gastar livremente. Trata-se de um
nível inferior à média de 29,25% observado durante a gestão Bolsonaro, mas
ainda assim um percentual bastante elevado frente à média histórica do nosso
presidencialismo de coalizão.
Essa ampliação do poder do Legislativo frente
ao Executivo parece irreversível e tem implicações muito significativas em
termos de governabilidade, eficiência do gasto e potencial de corrupção na
política. Trataremos disso na próxima semana.
*Bruno Carazza é professor associado da
Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do
sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Excelente, análise bem embasada e informativa!
ResponderExcluirBruno Carazza.
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