segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

João Saboia* - A regulamentação da renda básica de cidadania

Valor Econômico

Após 20 anos desde sua aprovação, a Lei 10.835/2004 que instituiu a renda básica continua uma promessa não realizada

O dia 8 de janeiro ficará marcado para sempre no país como aquele em que a Praça dos Três Poderes foi invadida por golpistas e os prédios da Presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal foram vandalizados. Mas outro acontecimento importante e menos lembrado ocorreu há vinte anos no mesmo dia 8 de janeiro. Trata-se da instituição da renda básica de cidadania (RBC) por meio da Lei 10.835/2004.

A lei menciona que o valor do benefício deveria ser concedido a todos os brasileiros e “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde”. A lei ainda informava que seu início se daria em 2005 e que sua abrangência deveria ser alcançada em etapas, sendo priorizadas as pessoas mais pobres. Após 20 anos desde sua aprovação, a Lei 10.835/2004 continua uma promessa não realizada.

No ano passado, por ocasião da recriação do Programa Bolsa Família (PBF), através da Lei 14.601 de 19 de junho de 2023, a RBC voltou a ser mencionada. No primeiro parágrafo do primeiro artigo, é informado que o PBF constitui uma “etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania”. Passados mais de seis meses desde então, a renda básica de cidadania permanece esquecida.

A RBC tem sido defendida incansavelmente pelo ex-senador e atual deputado estadual de São Paulo Eduardo Suplicy. A ideia é antiga e está apresentada em seu livro “Renda Básica de Cidadania - A Saída é pela Porta”, cuja oitava edição foi publicada em 2022 conjuntamente pela Cortez Editora e pela Editora Perseu Abramo. Vários pensadores, filósofos e economistas importantes são mencionados no livro como defensores da ideia da concessão de uma renda para todos independentemente de trabalharem ou não. Entre eles, Bertrand Russel, Frederick Hayek, Milton Friedman, James Tobin, John Kenneth Galbraith, Josué de Castro, Celso Furtado e vários outros. Até mesmo o Papa Francisco se pronunciou a favor da RBC no livro “Vamos Sonhar Juntos”, Intrínseca (2020).

Suplicy menciona em seu livro diversas experiências internacionais de aplicação da renda básica de cidadania, sendo a mais ampla a do Alasca nos Estados Unidos. A universalização do programa no Estado mostrou um grande potencial na melhoria da distribuição de renda, passando daquele com a distribuição mais desigual na década de 1980 para um dos dois mais igualitários nos Estados Unidos. Atualmente, há mais de 130 países debatendo e realizando experiências de renda básica no mundo.

No Brasil, o caso mais bem sucedido de RBC ocorre no Município de Maricá no Rio de Janeiro. O programa foi criado em 2013 e beneficia atualmente 93 mil moradores, cerca de metade da população do município, distribuindo mensalmente 230 mumbucas (equivalente e R$ 230) a cada um. A prefeitura pretende universalizar no futuro o programa para atingir toda a população do município. A moeda mumbuca é bem aceita pelo comércio local funcionando por meio de um cartão de débito. É verdade que a experiência de Maricá possui características específicas difíceis de serem replicadas na maior parte dos municípios brasileiros. Possui uma população relativamente pequena e muitos recursos provenientes do maior volume de receitas do petróleo no país (royalties e participações especiais). De qualquer forma, trata-se de um caso bem-sucedido, representando um bom exemplo do que pode ser feito no Brasil.

Muitas vezes a RBC não é bem compreendida pelas pessoas que a criticam por não ser um programa focalizado como o PBF voltado para famílias pobres. Argumenta-se que seria um desperdício de recursos distribuir renda para todos, inclusive para os mais ricos. Esse tipo de crítica desconsidera o fato que todos contribuem para o financiamento da RBC. Num sistema tributário justo, os mais ricos pagam mais impostos e, consequentemente, seriam os que mais contribuiriam para seu financiamento. Além disso, sendo universal, a RBC elimina toda a burocracia de controle da renda de cada um para poder receber o benefício.

A RBC deve colaborar significativamente para o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme explicita o artigo 3 de nossa Constituição. Ela representa um direito do cidadão, independentemente de sua situação socioeconômica. É do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano que a RBC se posiciona.

Outra crítica feita à RBC é seu custo e a dificuldade de caber dentro do atual orçamento público do país. Considerando uma população da ordem de 205 milhões de pessoas e fixando um valor de R$ 100 por pessoa o total atingiria R$ 20,5 bilhões para cada pagamento realizado. Trata-se de um valor considerável. Cabe lembrar, entretanto, que segundo a Lei 10.835/2004 que instituiu a RBC, a abrangência do programa deve ser atingida em etapas, começando pelos mais pobres. Portanto, a RBC poderia ter início com uma pequena parcela da população e um valor inicial compatível com a disponibilidade de recursos públicos.

É sabido que a pobreza no Brasil atinge principalmente a população mais jovem. Assim, apenas a título de ilustração, seguindo o espírito da Lei 10.835/2004 de iniciar pelos mais pobres, a primeira etapa de implantação poderia ter início com os mais jovens, definindo-se uma faixa etária até determinada idade que seria a primeira a receber a RBC. Em seguida, esta faixa seria aos poucos ampliada para novos beneficiários até atingir toda a população no futuro.

Uma forma de se caminhar para a regulamentação da Lei 10.835/2004 poderia ser a montagem de um grupo de trabalho que incluísse pessoas de notório conhecimento sobre o assunto, além de representantes do governo e da sociedade, para propor um formato e as etapas como a RBC poderia ser implementada no país. Vinte anos já se passaram. Está mais do que na hora de se voltar a discutir a questão para que RBC seja finalmente implantada no Brasil.

*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ).

 

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