terça-feira, 9 de janeiro de 2024

César Felício - Ataques golpistas permitiram a Lula ultrapassar barreiras da polarização

Valor Econômico

Documentários mostram participação decisiva de Janja na rejeição à GLO

Um traço marcante dos dois documentários divulgados nesse domingo (7) sobre o 8 de Janeiro, com a participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi o bastidor sobre a decisão do governo de rejeitar na ocasião uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Tanto na produção levada ao ar pela GloboNews quanto na peça publicada pelo site do jornal “Folha de S.Paulo” destaca-se o papel decisivo da primeira-dama Rosângela Silva, a Janja, de ter afastado o presidente dessa solução, em reunião feita na Prefeitura de Araraquara (SP), onde o presidente estava por ocasião dos ataques em Brasília.

Nos depoimentos colhidos nos dois documentários, teria partido da primeira-dama o alerta de que uma GLO colocaria em mãos militares a solução para uma crise que colocava em xeque a permanência do governo. A paternidade da ideia da GLO não fica explicitada. A tese parece ter tido algum grau de aval do ministro da Justiça, Flávio Dino, mas seria originária do então ministro do GSI, general Edson Gonçalves Dias, ou de “alguém” que assessorava o ministro da Defesa, José Múcio, cuja identidade o assessorado optou por preservar, ao gravar a sua fala.

Os depoimentos colocam, portanto, a primeira-dama em um grau de protagonismo em uma crise institucional inédito na história brasileira. O exemplo anterior mais recente que pode ser comparável foi o de Alzira Vargas, filha de Getúlio que participou das reuniões decisivas da crise de agosto de 1954, sem ter podido no entanto, influenciar em seu desfecho. Ainda assim tratava-se de familiar, mas não de cônjuge do presidente.

Essa passagem da crise de 8 de janeiro dá a dimensão do grau de poder da primeira-dama junto ao presidente. Ilustra também o desnorteio do núcleo do poder no dia dos incidentes, enfraquecendo a narrativa que a oposição tentou emplacar de que o presidente teria tido a exata noção do que estava por vir e calculadamente teria deixado a crise se desenrolar, para poder colher dividendos políticos. Os documentários deixaram claro de que não havia certeza do que se fazer no núcleo de poder do Planalto.

Que os episódios de 8 de janeiro redundaram em fortalecimento de Lula, contudo, não resta dúvida.

Lula retornou ao poder e governa em um cenário de polarização exacerbada. Os únicos momentos em que ele conseguiu ir além de sua própria bolha foi ao conseguir encarnar a defesa de um valor transcendental para parte da sociedade brasileira, que é a institucionalidade democrática.

Ele fez isso durante a eleição, com o discurso de frente ampla, agiu assim no começo do governo na reação ao 8 de Janeiro e volta a fazer agora, na memória de um ano dos ataques de Brasília.

Contou e conta para isso, evidentemente, com o fato de que a principal liderança de oposição a ele, o ex-presidente Jair Bolsonaro, sempre representou uma ameaça a esse valor.

Bolsonaro adota por vezes o discurso pseudolibertário de extremistas a favor de um direito de expressão absoluto, supostamente ameaçado por uma hegemonia cultural “woke”, mas isso jamais se sobrepôs a outro traço definidor seu, que é a defesa de uma autocracia de corte militar e traços inspirados no fascismo.

Bolsonaro sempre inspirou temor em uma franja do eleitorado distante de Lula ou do petismo mas ciosa da defesa do Estado democrático.

Segundo as pesquisas que embasaram o livro “Biografia do Abismo”, de Felipe Nunes e Thomas Traumann, o grupo que coloca a democracia como um valor acima das diferenças ideológicas pode ser minoritário dentro da sociedade, mas, em um ambiente altamente polarizado, a oscilação de segmentos minoritários da opinião pública pode se tornar decisiva.

Ainda não está provado, e talvez nunca se torne evidente se houve ou não um comando organizado para se tomar o poder dentro do que se convenciona chamar de golpe de Estado, por ocasião do 8 de Janeiro.

Outro ponto é identificar quem foi o responsável por ter gerado as condições para que um 8 de Janeiro ocorresse. Ou seja, quem insuflou.

Ao longo de seu mandato, nas diversas ocasiões em que dialogou com sua militância, Bolsonaro preparou o terreno, semeou e deixou tudo pronto para a colheita.

Trabalhou para que houvesse um clamor de baixo para cima. O “eu autorizo” gritado pelos seus apoiadores até o fim do processo eleitoral virou o “quem decide o meu futuro são vocês”, frase do ex-presidente em um dos seus poucos pronunciamentos depois da derrota.

O fato de estar na Flórida no momento da insurreição não apaga essa responsabilidade e cada vez que seus adversários recordam do 8 de Janeiro é um momento em que Bolsonaro se circunscreve mais dentro dos próprios muros de seus apoiadores.

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