Folha de S. Paulo
Gravidade limítrofe do 8 de janeiro virou
pretexto para repressão geral a protestos
A modesta
reação do Estado brasileiro à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 representa
um pequeno passo para a democracia, um grande salto para a bestialidade. Ou
pelo menos um novo salto para a continuidade de uma longa história de
ilusionismo verbal e eufemismos que, a pretexto de "pacificar",
preservam incentivos à delinquência política. Na nossa tradição
da pacificação, cabe mais violência do que direitos.
A principal dúvida para a celebração de um
ano da tentativa
de golpe militar, aparentemente, foi estilística. Alguns queriam dar à
cerimônia o título de "democracia restaurada". Arthur Lira,
presente nos palanques de Bolsonaro,
pediu "democracia inabalada", pois se recusou a enxergar qualquer
ameaça ou dano a ser consertado. E venceu, inabalado.
Se honestidade fosse marca da verborragia
política, o evento poderia se chamar "democracia emasculada". Ou
então democracia impedida, algemada: a indisposição, por fraqueza de vontade ou
de força, para punir
crimes do poder político, econômico e militar.
Perderam os manés e lambaris, as manicures e caminhoneiros, condenados à prisão por "atentado à democracia". Celebraram os barões, patrões e tubarões, fardados ou engravatados, com ou sem coturno. Liberados para a reincidência, já já podem voltar a conspirar contra eleições livres.
A pacificação foi sacramentada por Lula: "Daqui
para a frente, a democracia precisa dar respostas aos anseios da população,
precisa garantir emprego, salário, educação, saúde". A
democracia brasileira tem urgências, e suas urgências nunca passam pela
democratização de instituições armadas insubordinadas ao poder civil.
A garantia de direitos da população, contudo,
também precisa de instituições que não confundam essa tarefa com
"comunismo", nem usem esse termo despido de conteúdo como apito
retórico para atacar "inimigo interno" que lhes incomode. Se
a liberdade não é possível a quem tem fome, também não é a quem está
sujeito a capricho de generais.
Mas talvez essa não seja a única vitória das
forças bolsonaristas. Dias atrás, a Polícia
Militar do estado de São Paulo passou
a prender manifestantes que se dirigiam a protestos contra aumento de tarifa. E
tipificaram as prisões como "tentativa de abolir violentamente o Estado
democrático de Direito", em referência ao crime que motivou prisão de
cidadãos em 8 de janeiro.
A polícia tenta promover duas ampliações
conceituais fraudulentas e sorrateiras: primeiro, torna possível interpretar
qualquer protesto contra o poder público como tentativa
de abolição da democracia; segundo, basta encontrar meia dúzia de
manifestantes com armas brancas na mochila (pedra, soco-inglês) para definir a
manifestação inteira como criminosa. Nem a tipificação do crime de terrorismo
abriu essa avenida para a arbitrariedade policial.
Num ambiente de polarização sectária, não
surpreende que, se os "protestos de direita" pelo golpe de Estado
foram qualificados como crime de atentado à democracia, os "protestos de
esquerda" contra aumento de tarifas também o sejam. Induzir confusão e não
distinguir é uma arte autoritária.
Ainda que a tradição policial brasileira em
protestos, praticada também no 8 de janeiro, costume discriminar ilegalmente um
dos lados do espectro, o debate jurídico relevante
não tem nada a ver com a adulação ou repressão discriminatória entre protestos
"de esquerda" e "de direita". Disciplinar direitos
constitucionais, de quaisquer grupos, e estabelecer limites e critérios, é seu
principal objetivo.
O ataque de 8 de janeiro, tanto quanto os
acampamentos em quartéis e interdições nas estradas que o antecederam, todos
parte de um mesmo fim, explodiram
limites jurídicos. Porque, ainda quando atos concretos isolados se parecem
visualmente (uma vidraça quebrada, uma via interditada), os tipos de
reivindicação, as estruturas de comando e financiamento, e sobretudo seus
planos documentados levam a qualificação normativa muito diversa. Elementos
contextuais e não visuais marcam a diferença legal.
O STF ainda deve
à democracia brasileira uma jurisprudência das liberdades com mais parâmetros
jurídicos e menos frases de efeito. Na sua ausência, bolsonaristas de coturno
continuarão a explorar
as brechas da lei e os potenciais autoritários do 8 de janeiro.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
■■Grande farsa fazer ato contra Bolsonaro e pela democracia tendo no palanque o bolsonarista que é presidente da Câmara e que agora é Lulista e, no mesmo passo de farsa e incoerência, ter também no palanque Lula, um corrupto de R$Bilhões de dinheiro público.
ResponderExcluirPráticas de milícias e corrupção nada têm a ver com democracia!
E nós sabemos que os dois populistas, Lula e Bolsonaro, são articulados com os movimentos autoritários mundo afora:: os dois populistas ameaçam a democracia, e não um apenas.
Excelente coluna, crítica e que nos faz pensar! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirPois é.
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