O Globo
A nova disputa de torcidas tem tudo para
chegar aos pleitos municipais de 2024
Cada eleição acaba contando uma história do
momento político, da conjuntura de humores, do desempenho econômico. Se a
eleição de 2016 marcou o início dos outsiders na política, se a eleição de 2020
refletiu os efeitos da pandemia, arrisco dizer que a eleição de 2024, sobretudo
nas grandes cidades, deverá ficar para a História como a eleição da
polarização.
Polarização sempre existiu nas eleições para presidente do Brasil, especialmente nas disputas de segundo turno. Mas, desde 2018, transbordou e deu origem à polarização afetiva, ambiente em que o adversário passa a ser visto como inimigo. Ele se torna uma ameaça à própria existência, o que estimula rompimentos de amizades e até de relações familiares, além de ações de violência política. As pesquisas que temos feito na Quaest têm mostrado uma parcela crescente dos que assumem ter rompido relações familiares ou de amizade em função da política. Que determinam seus comportamentos de compra em função da visão política. Que escolhem escola, restaurante e onde se informar a partir de identidades políticas.
No livro “Biografia do abismo”, escrito em
parceria com o jornalista Thomas Traumann, registramos o crescimento da
polarização afetiva no Brasil e demonstramos a partir de dados de pesquisas
(quantitativa e qualitativa) que houve um transbordamento dessa polarização,
normalmente aparente nos períodos eleitorais, para o cotidiano das famílias,
das empresas e das instituições. O que, em outros anos, era só uma eleição
entre grupos políticos virou uma competição de identidades, em que cada bolha
fica cada vez mais parecida internamente e, ao mesmo tempo, mais diferente da
outra. Essa calcificação das identidades políticas, provocada pelo
comportamento de Bolsonaro, foi fundamental para entender nossa sociedade nos
últimos anos.
A nova disputa de torcidas tem tudo para
chegar aos pleitos municipais de 2024.
Primeiro, tanto Lula quanto
Bolsonaro precisam melhorar o desempenho de seus respectivos partidos nas
prefeituras e devem entrar de cabeça nas disputas das grandes cidades
brasileiras. O PT elegeu
apenas 182 prefeitos em 2020, seu pior desempenho eleitoral desde 1998. O
partido do presidente Lula é o décimo maior em número de prefeituras. O PL de
Bolsonaro obteve vitória em quase o dobro das cidades em 2020 (348), mas ainda
tem bem menos prefeituras que PSD (968), MDB (838), PP (712)
e União Brasil (564). Lula e Bolsonaro precisam fazer crescer o número de
prefeitos porque sabem que são os principais cabos eleitorais de deputados
federais. Para um presidente governar (ou ser oposição de fato) dependendo
menos de alianças, de emendas e cargos, precisa ter prefeitos aliados ajudando
na eleição da Câmara dos
Deputados de 2026.
Segundo, mesmo nas cidades em que PT e PL não
duelarão pela vitória, os candidatos competitivos se organizam em torno de Lula
e Bolsonaro. Em São Paulo, Boulos (PSOL)
e Nunes (MDB) disputam o espólio político de Lula e Bolsonaro na cidade. No
Rio, Paes (PSD) deverá ser o candidato de Lula para não deixar Ramagem ajudar o
PL a crescer. No Recife, João Campos (PSB)
deverá receber o apoio de Lula contra Gilson Machado (PL), outro aliado de
Bolsonaro. Em Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB) quer garantir o apoio do PL
para ser candidato hegemônico do bolsonarismo na cidade e enfrentar os
candidatos de PSOL, PT e PDT,
que deverão dividir o apoio de Lula.
Terceiro, Lula e Bolsonaro continuam tendo,
cada um, imagem positiva em pelo menos um terço do eleitorado brasileiro. Na
última pesquisa Genial/Quaest divulgada, constatamos que 36% dos brasileiros
amam ou gostam de Lula, 28% não gostam nem desgostam, e 32% não gostam ou
odeiam (4% não souberam responder). Na mesma pesquisa, 30% afirmam que amam ou
gostam de Bolsonaro, 26% não gostam nem desgostam, e 40% não gostam ou odeiam
(4% não souberam responder). Esses sentimentos não estão dispersos de forma uniforme
no país. Lula é mais amado no Nordeste e mais odiado no Sul. Bolsonaro é odiado
no Nordeste e amado no Centro-Oeste. Mas, com pelo menos 30% de admiração de
cada um dos lados, é plausível supor que terão poder de alavancagem eleitoral
de seus candidatos. O grau de polarização é tão grande que pode abafar até os
efeitos de um possível bom desempenho econômico do governo.
Nada disso vem sem consequências. Do ponto de
vista individual, a calcificação da polarização tende a produzir mais
violência, autoritarismo e intolerância. Do ponto de vista macro, a polarização
nas campanhas de 2024 implica duas coisas: primeiro, incentiva os deputados a
atuar no Congresso de forma polarizada para ajudar a campanha de seus
candidatos a prefeito, dificultando a busca por consensos no Legislativo; e,
segundo, aponta uma eleição de 2026 tão ou mais radicalizada que a de 2022,
ampliando a falta de diálogo no país.
*Felipe Nunes é PhD em ciência política e mestre em estatística pela UCLA, professor da UFMG e diretor da Quaest
Que pena!
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