sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Flávia Oliveira - Sacudindo a cidade

O Globo

Quinho foi uma estrela do carnaval do Rio, da cultura do Brasil

A última vez que vi Quinho foi em 14 de janeiro de 2023. Ele foi um dos homenageados com uma estrela na Calçada da Fama do Baródromo, o bar temático dedicado ao carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro. Já emagrecido pela doença, o ídolo do Salgueiro — e de todos que amamos a festa — apareceu vestido de branco, com o inconfundível suspensório e gravata vermelhos, chapéu Panamá. Cantou um punhado de sambas com Paulinho Bandolim e músicos. Ao fim, emocionado, agradeceu à fonoaudióloga, também presente, pelos exercícios que lhe permitiram soltar a voz, mesmo debilitado. Foi tão bonito de ver.

Naquela tarde também foram reverenciados outros grandes nomes do carnaval carioca, de Laíla a Carlinhos de Jesus, de Vilma Nascimento a Maria Augusta, de Tia Surica a Tiãozinho da Mocidade. Quinho emocionou, em particular, pela fragilidade física e pela força artística. Adoecido, fez questão de comparecer. Comparecendo, fez questão de cantar. Cantando, reafirmou seu tamanho. Foi um gigante das escolas de samba. Melquisedeque Marins Marques, carioca da Ilha do Governador, não foi importante apenas para a Academia, como costumava se referir ao Salgueiro. Foi uma estrela do carnaval do Rio, da cultura do Brasil. Em postagem numa rede social, o Ministério da Cultura o chamou de ícone.

Em 2013, na coluna Negócios & Cia, do GLOBO, escrevemos sobre os sambas-enredo mais tocados no país. Em primeiro lugar, informara o Ecad, estava “Peguei um Ita no Norte” (Salgueiro, 1993); em nono, “Festa profana” (União da Ilha, 1989). A voz e os bordões de Quinho ecoavam em duas das dez faixas mais ouvidas no Brasil. Em 2021, o mesmo Ecad ranqueou as canções da década num especial sobre os 456 anos do Rio. O samba campeão de 1993, autoria de Arizão, Bala, Guaracy, Demá Chagas e Celso Trindade, só perdia para “Parabéns a você”.

Ontem, voltei ao órgão. Quinho deixa 13 composições e 43 gravações cadastradas. No ranking das músicas mais tocadas no carnaval no Estado do Rio entre 2017 e 2023, “Peguei um Ita no Norte” ficou na 6ª posição; “Festa profana” na 43ª. Em bailes, clubes, blocos, e eventos carnavalescos Brasil afora, o Ita é 29° nas 50 mais tocadas. Não há festa, ensaio ou show sem o hino salgueirense que Quinho eternizou. De agora em diante, cada execução será também homenagem à memória do cantor da alegria, da empolgação, da emoção.

Sinônimo de Salgueiro, Quinho também cantou na União da Ilha, na São Clemente, na Grande Rio, no Império da Tijuca. Em São Paulo, passou por Rosas de Ouro, Peruche, Vila Maria. Em cada agremiação deixou sua marca. Todas as escolas, as personalidades e os fãs do carnaval lamentaram sua partida precoce, aos 66 anos, em decorrência de um câncer na próstata descoberto em 2022. Numa entrevista ao UOL, admitiu que o diagnóstico demorou, porque resistia ao exame de toque retal, que ajuda a identificar a doença em estágio inicial.

Em 2003, surgiu na Austrália o movimento Novembro Azul, mês de conscientizar os homens sobre o câncer de próstata. É o segundo que mais incide na população masculina no Brasil, atrás apenas dos tumores de pele. No triênio 2023-2025, o Ministério da Saúde estima que surgirão, por ano, 71.730 novos casos de câncer de próstata. O setor público precisa fazer sua parte, seja aumentando a oferta de atendimento e tratamento, seja atuando para erradicar o tabu em torno dos exames. Nisso, a sociedade também tem seu papel.

Quinho foi mais um homem negro brasileiro com a existência abreviada por falta de informação e de atenção à saúde. Não faz muito tempo, escrevi sobre o bem-vindo aumento da longevidade no país, para 75,5 anos. Lembrei que envelhecimento deve ser direito de todos, não privilégio de poucos. Ana Amélia Camarano, demógrafa no Ipea, calculou a idade média ao morrer por raça e cor. Em 2022, mulheres pretas e pardas morriam ao 66 anos; homens, aos 59 — sim, cinquenta e nove, por extenso, para não deixar dúvidas. Entre os não negros, o número vai a 66 (homens) e 71 (mulheres).

Quinho poderia ter vivido mais, cantado mais, nos alegrado mais. Sua partida é uma lástima. Assim como a de tantos brasileiros cuja existência foi comprometida, ainda na juventude, por uma sociedade que criminaliza, segrega, despreza e violenta corpos negros. Muitos dos que estão a lamentar a perda de Quinho, ainda ontem, se insurgiam contra câmeras corporais para enfrentamento à letalidade de uma polícia responsável por três em cada dez homicídios no Rio. São os mesmos que pregam a apreensão de jovens por irem à praia num dia de verão. No Rio, governador, prefeito, presidente do Tribunal de Justiça e até o chefe do Ministério Público estão irmanados em jogar no lixo a presunção de inocência.

Quantos potenciais Quinhos adoecem e morrem, são apreendidos e humilhados, feridos e fuzilados por ato ou omissão dos que, em salões e avenidas, cantam a plenos pulmões “Explode coração, na maior felicidade”. Lembremos-nos de quem foi Quinho. E dos que nem chance tiveram.


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