O Globo
Precisamos voltar a debater, de forma serena
e adulta
Uma bandeira do Brasil atirada a uma poça de
água suja. A foto de autoria de Guilherme Mazui, publicada no portal g1, resume
o dia em que as três casas da democracia brasileira — Palácio do Planalto,
Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal — foram vandalizadas. A bandeira
em questão era uma pintura do artista Jorge Eduardo e estava no gabinete da
Presidência desde o governo Fernando Henrique. Há um paralelo entre a foto do
quadro no chão e outra imagem, de um viking pintado com as cores da bandeira americana.
Uma representa o 8 de Janeiro brasileiro. A outra resume o 6 de Janeiro
americano — dia em que o Capitólio, dois anos antes, fora invadido e depredado.
As duas datas infames e próximas — uma fez aniversário ontem, outra fará amanhã — têm um ponto de partida comum. Começaram a ser gestadas quando presidentes derrotados pelo voto popular — Donald Trump e Jair Bolsonaro — ignoraram a regra número um das democracias, de acordo com os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: reconhecer os vencedores em eleições livres e justas. “Democracias são regimes em que se perdem eleições”, definiu de forma magistral o polonês Adam Przeworski, outro autor de referência.
No livro “Como salvar a democracia”, lançado
no Brasil em novembro passado, os americanos Levitsky e Ziblatt observam que os
dois enredos, semelhantes no início, tiveram desfechos diferentes. Nos Estados
Unidos, a maioria do Partido Republicano abraçou a teoria conspiratória da
fraude nas urnas. Trump saiu fortalecido entre seus pares e deverá ser o
candidato de sua legenda nas eleições deste ano.
No Brasil vários aliados do bolsonarismo
reconheceram a vitória de Lula desde o primeiro momento. Entre eles, o
presidente da Câmara, Arthur Lira,
importantíssimo pelo peso institucional. Dois meses mais tarde, o grosso da
classe política condenou o vandalismo nos palácios. Poucos abraçaram a teoria
da fraude nas urnas, base da condenação de Bolsonaro — que, ao contrário de
Trump, tornou-se inelegível por oito anos.
As retrospectivas de 2023 celebraram a
vitória da democracia sobre o golpismo. Há, no entanto, uma nuance e um ponto
de atenção. A nuance é que o isolamento do bolsonarismo no delírio
conspiratório só foi possível no ambiente multipartidário brasileiro — em que
os políticos da direita democrática não dependem do ex-presidente para
prosperar em suas trajetórias. Num ambiente bipartidário como o americano, o
preço da ruptura com Trump, caudilho incontrastável em sua sigla, seria alto: o
ostracismo. Levitsky e Ziblatt citam vários exemplos no livro.
O ponto de atenção é que a violência e o
golpismo perderam, mas o sentimento que deu origem a ambos persiste. Noutra
obra que merece ser lida, “A biografia do abismo”, o cientista político Felipe
Nunes e o jornalista Thomas Traumann mostram como a divergência saudável sobre
projetos de país desapareceu do debate público brasileiro. No lugar dela,
segundo os autores, surgiu um clima de guerra aberta em que um lado quer
exterminar o outro, numa animosidade que extrapola os limites da política
partidária e se instala até no cotidiano das famílias.
Como superar isso? Levitsky e Ziblatt
acreditam na força de grupos pró-democracia surgidos dentro da sociedade civil
e em seu poder de influenciar o sistema político. Traumann e Nunes falam em
agentes públicos que respondam por seus atos e na necessidade de um esforço de
toda a sociedade para diminuir o clima de intransigência.
Precisamos voltar a debater, de forma serena
e adulta, o país que queremos. O 8 de Janeiro, com a depredação das casas da
democracia, demarcou uma linha. A bandeira brasileira jogada na água suja é o
retrato eloquente do país que não queremos.
*João Gabriel de Lima é jornalista e integrante do Observatório da Qualidade da Democracia da Universidade de Lisboa
Verdade.
ResponderExcluir