domingo, 7 de janeiro de 2024

João Gabriel de Lima* - Um retrato do país que não queremos

O Globo

Precisamos voltar a debater, de forma serena e adulta

Uma bandeira do Brasil atirada a uma poça de água suja. A foto de autoria de Guilherme Mazui, publicada no portal g1, resume o dia em que as três casas da democracia brasileira — Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal — foram vandalizadas. A bandeira em questão era uma pintura do artista Jorge Eduardo e estava no gabinete da Presidência desde o governo Fernando Henrique. Há um paralelo entre a foto do quadro no chão e outra imagem, de um viking pintado com as cores da bandeira americana. Uma representa o 8 de Janeiro brasileiro. A outra resume o 6 de Janeiro americano — dia em que o Capitólio, dois anos antes, fora invadido e depredado.

As duas datas infames e próximas — uma fez aniversário ontem, outra fará amanhã — têm um ponto de partida comum. Começaram a ser gestadas quando presidentes derrotados pelo voto popular — Donald Trump e Jair Bolsonaro — ignoraram a regra número um das democracias, de acordo com os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: reconhecer os vencedores em eleições livres e justas. “Democracias são regimes em que se perdem eleições”, definiu de forma magistral o polonês Adam Przeworski, outro autor de referência.

No livro “Como salvar a democracia”, lançado no Brasil em novembro passado, os americanos Levitsky e Ziblatt observam que os dois enredos, semelhantes no início, tiveram desfechos diferentes. Nos Estados Unidos, a maioria do Partido Republicano abraçou a teoria conspiratória da fraude nas urnas. Trump saiu fortalecido entre seus pares e deverá ser o candidato de sua legenda nas eleições deste ano.

No Brasil vários aliados do bolsonarismo reconheceram a vitória de Lula desde o primeiro momento. Entre eles, o presidente da Câmara, Arthur Lira, importantíssimo pelo peso institucional. Dois meses mais tarde, o grosso da classe política condenou o vandalismo nos palácios. Poucos abraçaram a teoria da fraude nas urnas, base da condenação de Bolsonaro — que, ao contrário de Trump, tornou-se inelegível por oito anos.

As retrospectivas de 2023 celebraram a vitória da democracia sobre o golpismo. Há, no entanto, uma nuance e um ponto de atenção. A nuance é que o isolamento do bolsonarismo no delírio conspiratório só foi possível no ambiente multipartidário brasileiro — em que os políticos da direita democrática não dependem do ex-presidente para prosperar em suas trajetórias. Num ambiente bipartidário como o americano, o preço da ruptura com Trump, caudilho incontrastável em sua sigla, seria alto: o ostracismo. Levitsky e Ziblatt citam vários exemplos no livro.

O ponto de atenção é que a violência e o golpismo perderam, mas o sentimento que deu origem a ambos persiste. Noutra obra que merece ser lida, “A biografia do abismo”, o cientista político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann mostram como a divergência saudável sobre projetos de país desapareceu do debate público brasileiro. No lugar dela, segundo os autores, surgiu um clima de guerra aberta em que um lado quer exterminar o outro, numa animosidade que extrapola os limites da política partidária e se instala até no cotidiano das famílias.

Como superar isso? Levitsky e Ziblatt acreditam na força de grupos pró-democracia surgidos dentro da sociedade civil e em seu poder de influenciar o sistema político. Traumann e Nunes falam em agentes públicos que respondam por seus atos e na necessidade de um esforço de toda a sociedade para diminuir o clima de intransigência.

Precisamos voltar a debater, de forma serena e adulta, o país que queremos. O 8 de Janeiro, com a depredação das casas da democracia, demarcou uma linha. A bandeira brasileira jogada na água suja é o retrato eloquente do país que não queremos.

*João Gabriel de Lima é jornalista e integrante do Observatório da Qualidade da Democracia da Universidade de Lisboa

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