Correio Braziliense
Lula ainda tenta recuperar o poder dos
mandatos anteriores, mas não consegue. Sua alternativa é confrontar o Congresso
e negociar, mas essa é uma via de mão dupla
Deve-se ao pensador italiano Antônio Gramsci,
quando encarcerado pelo ditador Benito Mussolini, nos seus Cadernos do Cárcere,
a diferenciação entre a pequena política e a grande política. A pequena
política é do dia a dia, nos bastidores do poder: intrigas, articulações e
interesses fisiológicos. A grande política envolve os assuntos que dizem
respeito aos grandes interesses nacionais, às estruturas econômico-sociais e
estaria ligada à fundação e conservação do Estado. Assim, seria de interesse de
quem faz a grande política excluí-la do debate político e trazer para o
primeiro plano o debate sobre a pequena política.
É mais ou menos o que ocorre na discussão sobre as vultosas emendas parlamentares ao Orçamento da União, que saltaram de R$ 11 bilhões para R$ 16,6 bilhões só para as emendas de comissão, conhecidas como RP8. Em 2023, o valor foi de R$ 6,9 bilhões. Ao sancionar o Orçamento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou R$ 5,6 bilhões dessas emendas, o que mais ou menos corresponde aos cortes feitos pelo Congresso nas verbas do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Mesmo com o veto, o saldo total das emendas parlamentares será de cerca de R$ 47,4 bilhões. As verbas do PAC somam cerca de R$ 55 bilhões.
Na reabertura dos trabalhos legislativos, em
rota de colisão com o Palácio do Planalto, os líderes do Congresso ameaçam
derrubar o veto, como já fizeram em outras ocasiões, caso das desonerações da
folha de pagamento. Nesta terça-feira, o governo sinalizou que estaria disposto
a negociar essas emendas, para que fossem mantidas e direcionadas aos objetivos
das políticas públicas. Entretanto, é leite derramado. A alternativa seria
negociar um acordo para o Orçamento da União de 2025.
No Senado, isso é até plausível, porque
senadores são eleitos por voto majoritário; na Câmara, porém, o voto
proporcional induz os deputados a atenderem interesses de prefeitos e
vereadores de sua base eleitoral. Há um choque entre a pequena política e a
grande política, mas o pano de fundo é o presidencialismo sob uma Constituição
de viés parlamentarista.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, cuja
relação com o Congresso havia se deteriorado completamente, deputados e
senadores avançam em relação à execução orçamentária. Seu vice, Michel Temer,
adotou uma estratégia de compartilhamento do poder com o Congresso. Pretendia
concorrer à reeleição com a bandeira do semipresidencialismo, com base no
modelo francês, o que seria a principal reforma política do país desde a
Constituinte de 1988. Temer defende essa tese até hoje.
Entretanto, no rastro de um cometa chamado
Lava-Jato, houve um choque de placas tectônicas na sociedade, que provocou um
"tsunami" eleitoral em 2018, no qual foi eleito o ex-presidente Jair
Bolsonaro. Grande parte do Congresso não renovou o mandato. Desde então, os
parlamentares sobreviventes passaram a construir uma blindagem institucional,
com objetivo de garantir a renovação de seus mandatos e impedir que a mesma
situação se repetisse.
Blindagem eleitoral
No começo de seu governo, Bolsonaro temia um
impeachment, por causa do escândalo das "rachadinhas" da Assembleia
Legislativa fluminense, no qual estaria envolvido o senador Flávio Bolsonaro
(PL-RJ), seu filho, então deputado estadual. A saída foi entregar a articulação
política de seu governo ao Centrão e, consequentemente, o orçamento de
investimentos do governo ao Congresso. Vem daí as dificuldades de Lula, que se
elegeu sem maioria no Congresso e teve que negociar sua governabilidade com o Centrão.
Lula ainda tenta recuperar o poder que tinha
nos mandatos anteriores, mas não consegue. Sua alternativa vem sendo confrontar
o Congresso e negociar, mas essa é uma via de mão dupla, porque o Centrão faz a
mesma coisa, com vantagem de ser o pêndulo que aprova as propostas de governo
e/ou derruba seus vetos. De quebra, ainda barganha a ocupação dos ministérios
para os quais são destinadas a maioria das emendas parlamentares. Ou seja, sua
estratégia esbarra na correlação de forças no Congresso.
A sucessão do presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), abriu espaço
para que a oposição saísse do isolamento. Lira é um defensor aberto do
semipresidencialismo, que é uma resposta às críticas de que o Congresso quer
controlar o Orçamento da União, mas não assume a responsabilidade quanto aos
êxitos das políticas públicas. Diante de um Congresso adverso, Lula indica
ministros que lhe são leais ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Esse jogo é muito perigoso para a democracia.
Além da paralisia na execução das políticas públicas e da dispersão de
recursos, desgasta a política e os partidos. A renovação do Parlamento é cada
vez mais obstruída na montagem de chapas pela cúpula dos partidos,
internamente, e pela "disparidade de armas" entre quem já tem mandato
e quem não tem, na disputa eleitoral propriamente dita. As emendas ao Orçamento
e ao grande aparato dos gabinetes parlamentares, além da concentração de
recursos do fundo eleitoral, fortifica a "partidocracia", que pode
provocar nova reação da sociedade, como ocorreu em junho de 2013.
Deus nos livre!
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