domingo, 28 de janeiro de 2024

Luiz Sérgio Henriques* - O pessimismo da razão

O Estado de S. Paulo

Há, pois, uma aparência de retomada dos anos 1930, mas também dos que se seguiram a 1945

Acostumamo-nos, não de todo arbitrariamente, a olhar para personagens, fatos e processos de um século atrás em busca de alguma luz que nos guie em meio à enorme obscuridade ao redor. Discutimos se o fascismo pode voltar, ainda que com roupagem nova, ou se a República Popular da China reatualiza o velho comunismo, agora singularmente dotado de dinamismo econômico e capaz de magnetizar, por causa da mobilidade social exitosa, o que antes se considerava o “Terceiro Mundo”. E as sociedades que, cada qual a seu modo, experimentaram a difícil combinação de capitalismo e democracia política voltam a caminhar na corda bamba, ameaçadas pelos seus próprios demagogos e o séquito de massas que arrastam em rodadas eleitorais sucessivas.

Há, pois, uma aparência de retomada dos anos 1930, mas também dos que se seguiram a 1945. Um observador marxista daquela década, pouco propenso ao sono dogmático, viu no surgimento e na imposição do americanismo e do fordismo não uma ardilosa maquinação imperialista, mas sim uma inédita tentativa de racionalização progressista da economia e da sociedade. Não é certo – referimo-nos a Antonio Gramsci – que deixasse de apostar inteiramente no socialismo soviético, mas é fato que admirava na civilização americana, em contraste com a europeia, uma capacidade hegemônica que “nascia diretamente da fábrica”. Por isso, ela dispensava mediações ideológicas excessivas bem como limitava vigorosamente setores parasitários, rentistas e outros dissipadores da riqueza socialmente produzida.

Processos históricos costumam se arrastar por muito tempo e evidentemente não estão determinados de antemão. No entanto, pode-se buscar no argumento gramsciano pelo menos o germe de uma explicação para o desfecho do confronto que se seguiria no segundo pós-guerra. A potência produtiva e a forte hegemonia implícitas no americanismo não teriam nada equivalente no comunismo soviético. E os reformadores deste último tipo de sociedade fracassaram ou chegaram tarde demais, quando estava tudo perdido e até mesmo uma retirada em ordem parecia impossível.

É sagaz a observação de que a ordem bipolar da guerra fria, cujo equilíbrio se limitava ao terreno militar e à possibilidade de mútua destruição, desde o começo estivesse de certo modo viciada pela relativa exclusão de gigantes asiáticos, como Índia e China. Onde antes havia uma secular “estagnação histórica”, comparada à expansão febril do mundo americano, cedo ou tarde se colheriam os frutos tanto da descolonização quanto de uma revolução jacobina, como a que se deu na China em 1949. Esta passaria por trilhas que desafiam os manuais de filosofia da História, bastando mencionar a surpreendente mudança estratégica patrocinada por Mao, Nixon e Kissinger. A partir de início dos anos 1970, o mundo comunista se partiria de vez, cimentandose gradativamente a aliança entre americanos e chineses em chave antissoviética.

Os chineses obtiveram amplo sucesso no ponto em que os soviéticos falharam. A modernização da economia ocorreu em marcha forçada nas décadas que se seguiram ao colapso da URSS e que são geralmente reconhecidas como o período de máximo poder do polo vencedor da guerra fria. A globalização neoliberal constituiu o terreno propício para a expansão chinesa, e esse não é de modo algum o menor dos paradoxos que experimentamos até chegar à atual “interdependência armada”.

Há muito mais coisas entre o céu e a terra além das relações de mercado, que não acarretaram automaticamente nada que se aproximasse de uma democratização efetiva. O partido único se manteve especialmente zeloso da condição monopolista. Mais do que isso, especialmente com a crise financeira de 2007 e a posterior ascensão de Xi Jinping, ficaria claro que não era estranho aos chineses um conceito particularmente caro a Vladimir Putin, aliado “sem limites” e sócio minoritário. Em extrema síntese, a derrota da URSS terá sido o maior desastre geopolítico do século 20 – e destino semelhante deve ser evitado por uma China elevada à condição de superpotência, ainda mais que agora, segundo essa mesma visão, o Ocidente declina e está fadado a ruir sob o peso das suas próprias contradições.

A afirmação da China e, mais em geral, da Ásia é um fato da vida e define a inevitabilidade de um mundo multipolar, hoje recheado de autocratas ou aspirantes a tal. Nele, as sociedades do capitalismo democrático, em crise agora como há cem anos, estão severamente desafiadas a renovar muitas das suas promessas não cumpridas tanto interna quanto externamente. É forte e variada, na parte mais dura das suas elites e mesmo em amplas parcelas da população, a tentação “corporativa” de se fecharem em si mesmas e se deixarem guiar pelos interesses mais brutos e imediatos, agravando insuportavelmente conflitos e desigualdades. Mas há também tradições, como o liberalismo político e o socialismo democrático, cujo horizonte intrinsecamente universal convém valorizar e enriquecer, mesmo que a hora presente nos convide a exercer impiedosamente o pessimismo da razão.

*Tradutor, ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil

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