O Globo
Na noite em que Tancredo Neves se internou em
Brasília e ficou claro que não poderia tomar posse no dia seguinte como
presidente da República, quem decidiu que o vice José Sarney assumiria foi o
general Leônidas Pires Gonçalves, já escolhido como novo ministro do Exército.
Os juristas se dividiam entre Sarney e o
presidente da Câmara, deputado Ulysses Guimarães, e Leônidas desempatou. O
senador Pedro Simon perguntou, indignado, a Ulysses por que ele não reagira
àquela decisão:
— Não podia, meu Pontes de Miranda estava me
cutucando com a espada dizendo que seria o Sarney.
Trinta e oito anos depois, na baderna insurrecional que tomou conta da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, houve uma reunião em que ficou decidido que seria aberto um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar a tentativa de golpe.
O presidente da Câmara, Arthur Lira,
perguntou quem seria o relator do processo, alegando que seria bom que o
ministro fosse escolhido por sorteio, para não dar a sensação de que as cartas
estavam marcadas. A presidente do STF, ministra Rosa Weber, foi taxativa:
— O Alexandre será o relator do processo.
Sem dúvida, evoluímos muito nestas mais de
três décadas. Em vez de um general, quem teve a palavra final foi uma ministra
do Supremo. Mas a solução encontrada só aumentou a controvérsia em torno dos
inquéritos que o Supremo abriu nos últimos anos para combater fake news, atos
golpistas, ataques a autoridades em geral. Todos juntos e misturados no mesmo
caldo cultural que impede que cheguemos ao fim da transição de uma tentativa de
golpe para a democracia plena.
O STF foi fundamental para a preservação da
democracia, uma barreira legalista nos diversos momentos em que o ex-presidente
golpista tentou cruzar a linha que separa um governo democrático de um
autoritário.
O ministro Alexandre de Moraes, ameaçado de
morte pelos revoltosos, tem razões para reagir com rigor a qualquer coisa que
cheire a autoritarismo, mas, justamente porque está envolvido no caso, não
deveria continuar centralizando todas as investigações.
O Supremo deveria começar a retroceder para
uma posição de neutralidade, que o colocasse longe da polarização política, e
trabalhar para que seu papel se resumisse ao de guardião constitucional, sem
aceitar ser chamado para decidir questões políticas.
É um abuso usar o Supremo para todas as
causas. Até da seleção brasileira seus ministros cuidam. E justamente por se
tratar de temas polêmicos, encharcados de paixão, os ministros acabam
envolvidos em lutas políticas de diversos níveis. Uns gostam desse papel;
afinal, estamos falando de poder. Outros se recusam a desempenhá-lo.
Seria bom que o plenário tivesse uma atuação
mais frequente, retirando o poder individual dos ministros. Não é natural que o
Supremo seja o principal apoio do Executivo diante da disputa com o
Legislativo. A aproximação do presidente com ministros não serve à democracia,
assim como é um excesso que eles se julguem em condições de defender
candidaturas para os tribunais superiores, inclusive o próprio Supremo.
Também o Legislativo não deveria ter
condições de emparedar o presidente da República para garantir seus interesses
paroquiais, em detrimento dos planos nacionais de desenvolvimento. Afirmar que
o Congresso representa com fidelidade a população brasileira é uma falácia,
pelo menos em países como o Brasil, onde a população, majoritariamente carente,
está submetida ao poder do dinheiro para o atendimento de suas necessidades
imediatas.
As emendas impositivas levam aos rincões os
interesses da elite política, que mistura o público com o privado. A
politização de fatos como a rebelião de 8 de janeiro retira da manifestação
contra os atos golpistas, justa, seu teor institucional. O presidente Lula não
deveria ter se colocado, e ao PT, como exemplo das vantagens da democracia. E o
presidente da Câmara e muitos dos governadores não deveriam ter se escusado de
participar dela.
Do jeito como foi, os dois lados continuaram a polarização que devora as entranhas da democracia brasileira, fragilizando-a.
Merval mervaindo.
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