terça-feira, 9 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais /Opiniões

Eleições tornam urgente regulação das redes sociais

O Globo

Congresso deve reduzir riscos trazidos por desinformação e inteligência artificial às campanhas

No primeiro aniversário da tentativa de golpe de 8 de janeiro, é salutar o país avaliar o que foi feito nos últimos 12 meses para evitar novos ataques à democracia e urgente destacar o que falta fazer. Um ponto parece unir as principais autoridades da República: a necessidade de regular as redes sociais, principais focos de conspirações golpistas.

Em entrevista ao GLOBO, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi categórico: “A prioridade é impedir a continuidade dessa terra sem lei das redes sociais”. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também defendeu a regulação em entrevista recente: “Esse movimento de uma vida paralela, não analógica, uma vida digital muito rápida, vai exigir de nós, congressistas, que algumas modificações aconteçam”.

Faltando sete meses para o início da propaganda eleitoral, o Congresso deve dar atenção ao tema. Passou da hora de deputados e senadores deixarem de ser reféns das fabulações espalhadas pelas grandes plataformas digitais. A falta de regras transformou as redes sociais e os aplicativos de comunicação em centros de disseminação de desinformação. Repetidas vezes, as empresas de tecnologia falharam. Quando vídeos, áudios ou memes fraudulentos são removidos, milhões já os viram, e o estrago já está feito.

A proposta de lei sobre o tema — o Projeto de Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, ou PL das Fake News — já foi amplamente debatida. A versão amadurecida estabelece um equilíbrio adequado entre a necessidade de respeito à privacidade e à liberdade de opinião e a atribuição de responsabilidade às plataformas pelo respeito às leis brasileiras (dever de cuidado). Com a aproximação das eleições municipais, não há a menor razão para ela continuar parada.

A popularização da inteligência artificial (IA) torna a regulação ainda mais urgente. Não é difícil prever o que vem pela frente. Em fevereiro de 2023, na véspera do primeiro turno da eleição para prefeito em Chicago, um áudio falso circulou com voz idêntica à do candidato democrata defendendo violência policial. Em outubro, nos dias que antecederam a eleição na Eslováquia, surgiu uma profusão de vídeos fraudulentos que exibiam um líder progressista dizendo ser favorável à compra de votos e fazendo piadas sobre pornografia infantil. Em novembro, antes do segundo turno do pleito presidencial na Argentina, as campanhas dos dois candidatos admitiram usar IA para fraudar vídeos.

No mundo off-line, há leis. São vedadas “montagens, trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais” na propaganda eleitoral por rádio e TV. O mundo on-line é um faroeste. Pelo bem da democracia, isso tem de acabar. Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, defende a cassação e a inelegibilidade de candidatos que usarem IA para manipular propagandas. Sem legislação específica, existe a dificuldade de rastrear a origem dos conteúdos disseminados por aplicativos de mensagens. Essas e outras barreiras exigem que o Congresso tente reduzir os riscos.

As eleições de outubro podem ser as primeiras sob a égide de novas leis para o meio digital. Deputados e senadores não podem mais perder tempo. Quando o Congresso voltar do recesso, essa deve ser uma das prioridades. O prazo é exíguo, e o assunto, como mostra o 8 de Janeiro, da máxima importância.

Fiscalização falha explica leniência diante de tragédias com mineração

O Globo

Mariana, Brumadinho e Maceió mostram que passou da hora de ampliar corpo de fiscais da ANM

A ineficácia da fiscalização de barragens de rejeitos de mineração é a principal causa das tragédias de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019. No período entre os dois desastres, em 2018, 60 mil moradores de cinco bairros de Maceió (AL)começaram a ser forçados a abandonar suas casas pelo afundamento do solo, resultado de erros na extração do sal-gema. Tais tragédias teriam sido evitadas a tempo se houvesse fiscalização mais eficaz da Agência Nacional de Mineração (ANM).

A ANM é um caso típico de gestão insatisfatória dos recursos humanos pelo Estado. Enquanto categorias do funcionalismo usufruem privilégios injustificáveis e em várias repartições há servidores em excesso, um corpo técnico competente faz enorme falta noutras. “É inviável a gente fiscalizar o que tem de ser fiscalizado”, disse ao GLOBO o diretor da Associação dos Servidores da Agência Nacional de Mineração (ASANM), Ricardo Peçanha. “Por isso fazemos [as inspeções] por amostragem e, mesmo assim, é menos do que deveríamos, porque não temos gente.”

Peçanha compara o trabalho da ANM ao da Receita Federal diante das declarações de Imposto de Renda: “As empresas de mineração fazem um relatório anual, e cruzamos com outros bancos de dados. Quando identificamos inconsistência, aí, sim, vamos a campo”. Nem sempre, como se constata, têm chegado a tempo. O método de fiscalização por amostragem, embora seja o único viável diante das condições, é criticado por depender de dados pouco confiáveis, fornecidos pelas empresas de consultoria que preenchem os relatórios.

A ANM conta com um quadro de 664 servidores, quando, pelo projeto original, deveria ter 2.121. Hoje há apenas 237 fiscais para o Brasil todo. Minas Gerais, onde se concentra a exploração mineral no país, tem cerca de 400 barragens de rejeitos, a maioria próxima a cidades. Apesar do caráter corporativo da pauta da ASANM, fica evidente que a equipe é insuficiente para realizar um trabalho técnico com a profundidade necessária em Minas e no resto do país.

Informações divulgadas em 2019 sobre falhas de fiscalização em Brumadinho e Mariana levaram o Ministério Público a firmar um acordo com a União e a ANM. O objetivo era melhorar a qualidade das inspeções de todas as barragens consideradas inseguras e realizar um plano de reestruturação da fiscalização. Não houve avanços. Quatro anos depois, em 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou uma Lista de Alto Risco da Administração Pública, incluindo a ANM — por insuficiência de materiais de tecnologia da informação, déficit orçamentário, falta de pessoal e também de transparência.

Por tudo isso, o quadro de fiscais da agência precisa ser ampliado. Até para que a falta de pessoal não seja usada como desculpa para justificar a leniência. E o governo deveria conferir a urgência necessária à reforma administrativa, capaz de reorganizar o Estado, extinguir gastos inúteis, levar funcionários públicos aonde são mais necessários e evitar, assim, novas tragédias.

Ampliar vacinação e adaptar orçamento, os desafios da Saúde

Valor Econômico

Balanço mostrou a reversão da queda da imunização das crianças que vinha ocorrendo desde 2016

O aumento da cobertura vacinal infantil foi comemorado pelo Ministério da Saúde ao apresentar o balanço preliminar de dez meses do Movimento Nacional pela Vacinação. O Movimento teve um lançamento emblemático, em fevereiro: a vacinação do presidente Lula pelo vice, Geraldo Alckmin, que marcou a “virada de chave”, como definiu a ministra da Saúde, Nísia Trindade. Mas os problemas estão longe de acabar. Entre eles estão a expansão da dengue, a preocupação com a saúde dos indígenas, a mudança de regras do orçamento da saúde e a infindável cobiça política pela pasta.

O balanço do Movimento Nacional pela Vacinação mostrou a reversão da queda da imunização das crianças que vinha ocorrendo desde 2016 e foi acentuada no governo de Jair Bolsonaro, não só por conta da covid-19 como pela negligência das autoridades com o tema e pelas campanhas de desinformação das redes sociais. Segundo dados preliminares do ministério, de janeiro a outubro houve aumento da cobertura de sete das oito vacinas recomendadas para as crianças com um ano de idade. Também cresceu a cobertura da vacina contra a febre amarela, indicada aos nove meses de idade.

A recuperação aconteceu em todo o país. Um terço dos municípios atingiu 95% de vacinação do público alvo, a meta fixada pelo governo. Fora a primeira dose da tríplice viral, nenhuma vacina do Programa Nacional de Imunizações (PNI) ultrapassa os 80% de cobertura. O Ministério da Saúde também festejou o salto de cerca de 30% da vacinação contra o HPV, que sempre foi alvo de campanhas negativas nas redes sociais.

Agora, a dengue é outro foco de atenção. O Brasil já é o país com mais casos de dengue no mundo, alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS), com 2,9 milhões registrados em 2023, mais da metade dos 5 milhões relatados mundialmente. A preocupação aumentou porque a elevação da temperatura mundial, com a crise climática acentuada pelo fenômeno El Niño, cria condições para a sobrevivência do mosquito transmissor, o Aedes aegypti, também vetor da chikungunya e da zika.

O avanço da dengue vem sendo observado há alguns anos. Mas só neste governo o Ministério da Saúde foi adiante e tornou o Brasil o primeiro país a incluir a vacina contra a dengue na oferta do sistema de saúde, a partir de fevereiro.

A partir deste ano também a vacina contra a covid-19 fará parte do Calendário Nacional de Vacinação, algo inimaginável há dois anos. O imunizante passará a ser aplicado anualmente em crianças menores de 5 anos e grupos prioritários, como idosos e imunocomprometidos, que devem totalizar 60 milhões de pessoas. Uma das preocupações é a vacinação infantil contra covid-19, que atingiu apenas 12% das crianças até 5 anos.

Uma das primeiras ações do ministério no novo governo foi enfrentar a emergência no Território Yanomami em conjunto com a segurança pública e a área ambiental. Desassistidos pelo governo de Bolsonaro e contaminados por garimpeiros, os yanomamis apresentavam quadros graves de desnutrição e doenças. Levantamento apresentado em dezembro contabilizou 13 mil atendimentos de saúde aos indígenas. Somente em maio foi desativado o hospital de campanha de emergência operado pelas Forças Armadas. O atendimento voltou para a Casa de Saúde Indígena (Casai) que ainda tem mais de 300 pacientes em tratamento.

Em outra frente, o ministério terá que se adaptar à mudança das regras do financiamento. Com o novo arcabouço fiscal e o fim do teto de gastos, voltaram a valer os pisos mínimos constitucionais de 15% da receita corrente líquida tanto para a Saúde, e não mais o valor corrigido pela inflação. Por um lado, o piso mínimo garante um valor estável para o planejamento a longo prazo e evita os riscos de desvio por prioridades políticas, como analisa o economista especialista em saúde, André Cezar Médici, no blog da Conjuntura Econômica (26/12). Um dos desafios ainda é reduzir as filas de espera para as cirurgias eletivas, que chegaram a 1 milhão. Do outro, será necessário reavaliar os valores periodicamente para garantir que acompanhem a variação da inflação do setor e atendam a demandas específicas, como o envelhecimento da população.

A Saúde foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que lhe destinará R$ 30,5 bilhões até 2026. São alvos a Atenção Primária, Atenção Especializada, Preparação para Emergências em Saúde, Complexo Industrial da Saúde e Telessaúde. O Complexo Industrial da Saúde receberá R$ 8,9 bilhões para produzir 70% dos equipamentos, materiais médicos e medicações necessários - uma ambição a ser testada dado que nem sempre há escala que justifique a produção de todos os itens.

Depois de ter superado as investidas do Centrão pelo seu cargo, a ministra Nísia Trindade segue com apoio do presidente Lula. Nada garante, porém, que os conservadores não voltem a atacar, atraídos pelo orçamento reforçado e incomodados pela posição da ministra a favor das vacinas.

O nó do investimento

Folha de S. Paulo

Crescimento duradouro depende de confiança para ampliar capacidade de produção

Superado o impacto econômico da pandemia, o Brasil teve no último biênio um crescimento acima das expectativas e do padrão desalentador que se mantinha desde a década passada. Entretanto um indicador impede que se vislumbre um ciclo de avanço mais duradouro —a taxa de investimento.

Trocando em miúdos, trata-se do dispêndio privado e público em infraestrutura e aquisições de máquinas e demais bens destinados a ampliar a capacidade de produção. Outros gastos do governo e o consumo das famílias podem dar algum impulso ao PIB, mas é o investimento que garante maior oferta de mercadorias e serviços.

Nesse quesito, o país já conta dez anos perdidos, como mostram os dados recém-reunidos na Carta de Conjuntura do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado à administração federal) e reportados pela Folha.

Na medição mais recente do IBGE, relativa ao terceiro trimestre de 2023, investia-se aqui o equivalente a vexatórios 16,6% do Produto Interno Bruto. No período correspondente de 2013, a taxa se encontrava no maior patamar deste século, de 21,5%.

De lá para cá, a cifra despencou na esteira do desastre econômico produzido pelo governo Dilma Rousseff (PT), atingindo 14,9% em 2017. Após um período de modesta recuperação, o alento pós-crise sanitária elevou o percentual a 18,3% em 2021 e 2022. No ano passado, porém, houve novo retrocesso.

Mesmo nos momentos menos ruins, o investimento nacional mal tem sido capaz de compensar a depreciação da infraestrutura e das máquinas já instaladas. Nossa taxa está bem abaixo da estimada pelo FMI no conjunto dos países pobres e emergentes, de 32%, e até no mundo rico, de 22,4%.

Entre os motivos da piora recente, o mais palpável é o aumento de juros promovido pelo Banco Central para o controle da inflação, que vem sendo gradualmente revertido nos últimos meses. É plausível que incertezas quanto à troca de governo e ao cenário internacional também tenham pesado na conta.

O mau desempenho, no entanto, é de longa data —e é forçoso associá-lo a inconsistências da política econômica, particularmente no controle da dívida pública.

É ilusório imaginar que um programa de obras governamentais possa dar impulso relevante à economia. Mesmo no auge da bonança das gestões petistas, em 2010, o investimento do Tesouro e de suas estatais não passou de 2,7% do PIB. Hoje, as restrições orçamentárias são muito mais severas.

Concessões e parcerias com a iniciativa privada, sob marcos regulatórios adequados, são um caminho muito mais promissor. Mas é fundamental, sobretudo, buscar um ambiente de estabilidade que dê confiança a famílias e empresas.

Canabidiol em expansão

Folha de S. Paulo

Avanço paulista no uso do CBD é tímido; Congresso deve regular acesso nacional

Com o avanço das pesquisas sobre o uso medicinal de compostos derivados da maconha, diversos países estão liberando tratamento de doenças com esses remédios.

No Brasil, o projeto de lei 399 de 2015 viabiliza a comercialização de fármacos com Cannabis na formulação, enquanto o PL 89 de 2023 institui uma política nacional de fornecimento desses medicamentos.

Enquanto os projetos não são votados, estados e municípios avançam na legislação. Segundo levantamento desta Folha, até julho do ano passado 24 unidades da Federação ou já haviam aprovado leis que garantiam acesso a produtos à base de maconha pelo SUS ou estavam discutindo essa proposta.

São Paulo está entre elas. Em janeiro de 2023, sancionou-se diploma que permite distribuição de Cannabis medicinal pelo sistema de saúde. A regulamentação, concluída em dezembro, prevê o uso do canabidiol (CBD) em só três casos: esclerose tuberosa e síndromes de Dravet e Lennox-Gastout.

Trata-se de uma doença genética que causa tumores e dois tipos raros de epilepsia. Sem possibilidade de tratamento de outras enfermidades, o avanço é tímido.

Segundo nota da Fundação Oswaldo Cruz de 2023, as pesquisas com maior nível de evidências são conclusivas em relação à segurança e à eficácia dos canabinoides para outros tipos de epilepsia, dor crônica, espasmos da esclerose múltipla, náusea e perda de apetite pela quimioterapia, doença de Parkinson e distúrbios do sono.

O sistema de saúde do Reino Unido, um dos melhores do mundo, também indica canabidiol para epilepsia, dor crônica, espasmos e náuseas. Ademais, relatório da OMS de 2018 afirma que o CBD é seguro e não está associado a potencial viciante nem a efeitos negativos para a saúde pública.

Já há cidades brasileiras com indicações mais amplas. Em Volta Redonda (RJ), remédios são distribuídos para dor, autismo, epilepsia, doenças de Parkinson e Alzheimer.

É importante que estados e municípios garantam acesso a produtos com CBD ou THC para os tratamentos que já possuem robusta evidência científica —e eles não são tão restritos como os que constam da legislação paulista.

Mas essa fragmentação também torna o sistema caótico. Por isso, o Congresso Nacional deveria uniformizar o uso do canabidiol pelo SUS em nível nacional.

O golpismo explícito e o implícito

O Estado de S. Paulo

Poucos apoiam os atos do 8 de Janeiro, mas a compreensão autoritária do poder é bem difundida, como mostra malicioso pedido de ‘volta à normalidade democrática’ feito pela oposição

Poucos apoiam os atos do 8 de Janeiro, mas a compreensão autoritária do poder é bem difundida.

Repetida em vários círculos sociais e muito útil politicamente para alguns setores, é falsa a ideia segundo a qual todos os apoiadores de Jair Bolsonaro são golpistas empedernidos. Pesquisa recente da Genial/Quaest mostrou, por exemplo, que 85% dos eleitores de Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022 desaprovam os atos praticados no infame dia 8 de janeiro do ano passado. O golpismo explícito, portanto, não tem muitos apoiadores, o que é uma notícia alvissareira.

Não falta, contudo, quem considere que os golpistas que participaram do levante do 8 de Janeiro não eram delinquentes, mas patriotas que agora são vítimas de abuso do Judiciário. A distorção cínica do que os brasileiros todos puderam ver com seus próprios olhos ao vivo pela TV – isto é, a destruição das sedes dos Três Poderes, em flagrante ataque às instituições democráticas, na expectativa de que isso gerasse reação das Forças Armadas e a consequente instalação de um regime de exceção – se presta a um único propósito: causar confusão, que é onde viceja o autoritarismo.

Isso ficou claro no malicioso manifesto assinado por 30 senadores de oposição a propósito do evento oficial que lembrou ontem em Brasília o 8 de Janeiro. Das 80 e tantas linhas do texto, apenas 3 fazem referência aos “atos de violência e depredação dos prédios públicos”, frase em que o sujeito da ação está oculto por elipse. Daí para diante, a título de enumerar as ameaças à democracia, os sujeitos são todos nomeados: primeiro, o governo de Lula da Silva, que teria cometido “flagrante omissão” no dia 8 de janeiro – senha para insinuar que os petistas tiveram alguma participação nos atos golpistas; depois, o Supremo Tribunal Federal, que estaria violando direitos constitucionais no afã de condenar os golpistas.

O tal manifesto, em dois trechos, demanda que o País volte à “normalidade democrática” e encerra conclamando os brasileiros a viver “num ambiente de tolerância”, evitando “a perseguição a qualquer custo aos que pensam diferente”.

Chega a ser ofensivo. Esses senadores nunca pediram “normalidade democrática” quando Bolsonaro afrontou sistematicamente a democracia e suas instituições inclusive perante a comunidade internacional, quando atacou a imprensa de maneira grosseira e sistemática e quando fez campanha de descrédito do sistema eleitoral, ameaçando ignorar o resultado das urnas caso lhe fosse desfavorável. Tampouco não se recorda de alguma manifestação desses senadores desaprovando as raivosas declarações e atitudes de Bolsonaro contra opositores, absolutamente contrárias ao tal “ambiente de tolerância” que agora descaradamente dizem defender.

Ora, o País vive hoje em plena normalidade democrática. Há eleições livres. Há imprensa livre. Há funcionamento livre e autônomo de cada um dos Poderes. Certamente, há tensões, mas elas são próprias de todo regime democrático. Certamente, há decisões equivocadas da Corte constitucional – que merecem duras críticas –, mas isso é próprio de um regime democrático.

O “manifesto da oposição” ignora um fato básico da vida democrática. Estado Democrático de Direito não significa perfeição, tampouco sintonia com tudo o que cada um acredita e apoia. As divergências existem – e isso não é um defeito do regime democrático. Tratase, antes, de cristalina manifestação de que a sociedade é, de fato, livre, não subordinada à atuação do Estado.

O 8 de Janeiro não aconteceu à toa. Foi alimentado pelo discurso bolsonarista segundo o qual a eleição de Lula foi resultado de uma grande conspiração antidemocrática que envolveu todos os Poderes, sobretudo o Judiciário, para instalar uma ditadura de esquerda contra os “patriotas”. Logo, para essa malta, “voltar à normalidade democrática” significa instalar um regime em que prevalece não a lei, mas a vontade dos bolsonaristas – recorde-se que Bolsonaro, na condição de presidente, certa vez declarou que “as leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias” e que “as minorias têm que se adequar”. Como se viu no manifesto dos senadores de oposição, esse espírito golpista continua latente.

O indecoroso fundão eleitoral

O Estado de S. Paulo

Aprovação de R$ 4,9 bi para fundão eleitoral e reconhecimento de erros da Lava Jato não podem ser motivo para ensejar discussões sobre o retorno das nocivas doações de empresas

O Congresso Nacional aprovou uma verba de R$ 4,9 bilhões para bancar as despesas das campanhas para as eleições municipais deste ano. O valor ficou muito maior que o sugerido pelo governo no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), de R$ 939 milhões, mas não se viu movimentação da base aliada para barrar esse aumento descabido, pelo contrário.

Em defesa do fundo, lideranças do Legislativo têm um discurso pronto. Seria, segundo a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), o “custo da democracia” e uma forma de garantir a renovação da política. A maioria dos parlamentares não teve qualquer pudor em destinar tanto dinheiro para esse fim, à exceção do presidente do Senado,

Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que tentou, sem sucesso, chamar os parlamentares à razão.

Para Pacheco, seria plenamente possível financiar a campanha municipal tomando como base o valor reservado em 2020, bastando, para isso, atualizá-lo pela inflação acumulada nos últimos anos. A proposta foi fragorosamente derrotada na Câmara, por 355 votos a 101, o que dispensou sua apreciação por parte dos senadores.

Em defesa da redução do tamanho do fundo para níveis mais civilizados, Pacheco chamou a atenção para uma questão bastante relevante. Para o presidente do Senado, o valor aprovado, além de um erro grave, precipitaria discussões sobre o retorno do financiamento privado de campanhas. “E precipita inclusive uma reflexão sobre as eleições no País, o custo delas para o Brasil em todos os sentidos”, afirmou.

A preocupação do senador tem todo o sentido, uma vez que a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade das contribuições de empresas se deu em 2015, no contexto das investigações da Lava Jato. Desde então, o reconhecimento dos erros da operação já gerou a anulação de delações, provas e condenações.

Mais recentemente, o ministro Dias Toffoli suspendeu uma multa bilionária da J&F, aplicada em razão de um acordo de leniência celebrado com o Ministério Público Federal (MPF). Não seria nenhuma surpresa, portanto, que o valor indecoroso que o fundão atingiu e o desequilíbrio estrutural do Orçamento encorajassem discussões sobre a retomada das doações empresariais.

Seria um enorme e indesejável retrocesso, que a sociedade não pode aceitar. Como já defendemos neste espaço, as doações de empresas promovem a captura do processo político pelo poder econômico. São, sem dúvida alguma, nocivas à democracia, tanto que o principal argumento do STF para derrubá-las, em 2015, foi o de que elas equiparavam empresas a cidadãos, ferindo princípios constitucionais.

Em 2017, o Legislativo achou por bem disponibilizar recursos públicos para as campanhas eleitorais e aprovou a criação do Fundo Especial de Financiamento

de Campanha (FEFC). No primeiro ano em que vigorou, em 2018, o fundão recebeu R$ 1,7 bilhão; em 2020, foram R$ 2,03 bilhões; e em 2022, foram R$ 4,9 bilhões.

Como o Congresso manteve esse mesmo valor para o fundo eleitoral neste ano, os parlamentares acreditam terem sido bastante comedidos na definição de seu orçamento. A diferença, nada sutil, é que a campanha municipal, ainda que envolva mais de 5,5 mil municípios, tende a ser bem mais barata que uma disputa de alcance nacional para a escolha de presidente, governadores, senadores e deputados federais e estaduais.

O avanço da internet e de tecnologias para impulsionar propagandas tornou as campanhas muito mais baratas. Não é isso, portanto, que justifica o tamanho que atingiu o fundão, mas o apetite insaciável dos políticos por recursos que facilitem a escolha de aliados em suas bases.

A solução para dar fim a essa imoralidade financiada com dinheiro público não é, no entanto, reeditar as doações empresariais. Os partidos, enquanto pessoas jurídicas de direito privado, precisam lutar para convencer os cidadãos a contribuir para o sustento de suas atividades, entre as quais as campanhas eleitorais. Isso requer uma corajosa autocrítica sobre o papel que exercem na sociedade.

Populismo penitenciário

O Estado de S. Paulo

Acabar com a saída temporária de presos não tornará a sociedade mais segura

A sociedade está cansada de conviver com a violência. Década após década de absoluta incompetência do Estado para cumprir sua missão precípua de combater a criminalidade e garantir a segurança dos cidadãos, sobretudo nas grandes cidades do País, transformaram o medo num sentimento praticamente inerente à identidade nacional.

Esse misto de revolta e desalento diante da inoperância das autoridades ajuda a explicar por que não são poucos os cidadãos que se sentem pessoalmente aviltados com algumas medidas penitenciárias que não só são constitucionais, como se coadunam com a principal função da pena numa sociedade civilizada: a ressocialização.

É o caso, por exemplo, das saídas temporárias do sistema prisional, conhecidas como “saidões”, quando certos grupos de presos têm autorização judicial para permanecer fora do cárcere durante determinado período, em geral feriados. A imensa maioria dos beneficiados pelos “saidões” volta ao cumprimento da pena no prazo fixado pela Justiça, mas esse bom resultado fica obnubilado pela ação de uma minoria que aproveita a concessão estatal para fugir e, em alguns casos, para cometer crimes violentos.

Foi o que ocorreu em Belo Horizonte (MG). No domingo passado, o policial militar Roger Dias da Cunha, de 29 anos, foi assassinado com tiros à queima-roupa disparados por um preso que havia sido temporariamente liberado para as festas de fim de ano, mas não retornou ao presídio de origem.

Como era de imaginar, não faltaram políticos para explorar a justa indignação social contra um crime bárbaro praticado contra um agente do Estado, alguns se lançando ao populismo penitenciário ao prometer acabar com as saídas temporárias, sobretudo nas redes sociais, um espaço que, como se sabe, não serve à boa reflexão, e sim à catarse.

À luz da razão, acabar com os “saidões” não tornará a sociedade mais segura. O que faltou em Belo Horizonte e em outras cidades – como o Rio, onde até líderes de perigosas organizações criminosas foram beneficiados pela saída temporária de fim de ano – foi o devido escrutínio pelas autoridades penitenciárias de quem poderia ou não ser favorecido pela medida.

Antes de pugnar pelo fim dos “saidões”, de resto uma medida popularesca que só teria o condão de aplacar brevemente a revolta dos cidadãos, lideranças políticas que se pretendem responsáveis devem cobrar uma séria investigação sobre os eventuais desvios no cumprimento das regras do instituto da saída temporária e propor melhorias nos critérios de seleção dos beneficiários.

Ao fim e ao cabo, acabar com os “saidões” significaria atestar a falência do Estado em ressocializar os apenados que estão sob sua custódia, pois, se nenhum deles pode ser liberado nem sequer por alguns poucos dias, em que condições, afinal, haverão de ser reintegrados ao convívio social após o cumprimento de suas penas? Ademais, medida drástica assim também serviria para punir, e não incentivar, os presos de bom comportamento.

Em suma, política pública séria deriva de técnica, não de algaravia.

Democracia sempre

Correio Braziliense

A tentativa de golpe contra os Três Poderes, por meio da depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF, foi lembrada ontem, Dia da Democracia Inabalada, em cerimônias no Legislativo e no Judiciário

Em 8 de janeiro de 2023, o país assistiu ao ataque violento contra o Estado Democrático de Direito, com a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Ontem, o Dia Democracia Inabalada (nome dado ao episódio) foi lembrado em cerimônias no STF e no Congresso. Tanto no Judiciário quanto no Executivo, o tom dos discursos exaltou a importância da democracia e da harmonia entre Três Poderes, e a pacificação da sociedade. Os chefes de cada um dos Poderes deixaram claro que o fim da polarização não implica impunidade aos agressores.

Quem planejou e quem financiou a tentativa de ressuscitar a ditadura, por meio da abolição violenta do regime democrático de governo? Um ano depois, as indagações permanecem sem resposta. Na democracia, a sociedade brasileira reclama e tem o direito de conhecer os ideólogos e os financiadores que, efetivamente, estavam por trás da tentativa de golpe de Estado.

A recuperação dos danos provocados custou aos cofres públicos em torno de R$ 40 milhões. Um valor expressivo que saiu dos bolsos de trabalhadores e trabalhadoras. Uma injustiça. A conta deveria ser paga pelos agressores dos Poderes da República, pelos que patrocinaram e planejaram a manifestação mais execrável da história republicana. As perdas extrapolam aspectos materiais. Provocam também um impacto emocional em uma população que saiu há pouco tempo de uma ditadura e conhece os horrores de um sistema antidemocrático.

Até agora, o Ministério Público denunciou 1.413 pessoas, sendo 1.156 como instigadores dos atos de vandalismo, oito agentes públicos, dois financiadores, 248 executores e 30 condenados, em média, a 17 anos de privação de liberdade. O ministro do Supremo do Tribunal Federal Alexandre de Moraes, à frente dos inquéritos, sinalizou que os julgamentos dos acusados terão um ritmo maior no retorno dos trabalhos do Judiciário.

A Polícia Federal, por sua vez, tem demonstrado enorme seriedade nas investigações, na formulação das denúncias e na indicação dos criminosos. Atributos que se fazem mais do que necessários ante a polarização que divide a sociedade brasileira, entre democratas e defensores do regime de exceção. Errar seria dar munição aos que se opõem ao Estado Democrático de Direito, ao bem-estar coletivo e às administrações mais humanistas e que buscam eliminar as desigualdades sociais e econômicas, consolidadoras das iniquidades.

Um ano depois, o triste episódio apontou para a necessidade de eterna vigilância em defesa da democracia, um regime conquistado por meio do sacrifício de muitas vidas e de perdas irreparáveis. O estado de alerta permanente torna-se imprescindível, uma vez que não faltam adeptos do despotismo, modelo antagônico às liberdades individuais e, sobretudo, desprovido de respeito à vida. O passado não pode ser ressuscitado, mas lembrado para impedir retrocessos nefastos, que dividem a população, causam sofrimento e dores, e criam obstáculos ao crescimento da nação. Democracia sempre.

 

 

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