terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Merval Pereira - A vã ideologia

O Globo

A volta de Marta ao PT mostra que as teses petistas tentando reescrever a História recente, por serem fantasias políticas, não encontram respaldo nos fatos.

Não creio que a chapa Boulos-Marta tenha semelhanças com a vitoriosa Lula-Alckmin. Não se trata de um político de centro-direita se juntando a um líder de esquerda para derrotar extremistas. Boulos é um ex-extremista de esquerda que evoluiu para a esquerda tradicional, enquanto Marta Suplicy é uma política de esquerda que veio para o centro e, no máximo, pode ser classificada de centro-esquerda.

Quase uma chapa puro-sangue, enquanto a vencedora em 2022 sinalizava um governo de união nacional que ainda não se viabilizou. A volta de Marta ao PT mostra, isso sim, que as teses petistas tentando reescrever a História recente, por serem fantasias políticas, não encontram respaldo nos fatos. O propalado “golpe” contra a então presidente Dilma Rousseff, que a retirou do poder por um processo de impeachment supervisionado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), teve o apoio do voto de Marta, então no MDB. E o novo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi quem presidiu o processo contra Dilma, avalizando-o.

O máximo que Lewandowski, então presidente do Supremo, conseguiu fazer, como a referendar sua simpatia pelo governo de então, foi chancelar uma interpretação teratológica da Constituição, trazida pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros, incluindo uma vírgula inexistente no original constitucional para interpretar que o impeachment não seria seguido pela perda de direitos políticos. Isso permitiu a Dilma disputar em seguida a eleição para o Senado por Minas Gerais, sendo fragorosamente derrotada pelo eleitor.

Se Dilma é até hoje homenageada pelos petistas como vítima de um “golpe parlamentar”, a ponto de ganhar, como prêmio de consolação, a presidência do banco do Brics — que lhe dá direito a viajar de primeira classe pela Emirates, como qualquer outro presidente de banco, como ela mesmo lembrou, orgulhosa da mordomia —, como os que votaram a favor dele, ou o avalizaram, podem ser considerados companheiros leais?

Muitos outros deputados e senadores que votaram contra Dilma hoje circulam pelo poder sem ser cobrados por suas posições. Seria bom se isso significasse mudança de rumo petista, mas só ressalta que a incoerência do PT se revela diante da dificuldade do partido para lidar com a realidade.

A acusação de que o então juiz Sergio Moro, ao aceitar ser ministro da Justiça de Bolsonaro, revelou sua intenção de impedir que Lula o vencesse na disputa presidencial que Bolsonaro ganhou em 2018 é tão frágil que se voltou contra o próprio partido na escolha de Lewandowski para o mesmo Ministério da Justiça, depois de ter se aposentado do Supremo.

O convite do presidente Lula seria uma retribuição a Lewandowski, a quem já classificou de um companheiro leal? Qual a diferença entre um juiz assumir o ministério da Justiça, e um ministro aposentado do Supremo, que tem um histórico de votos a favor de Lula, assumir o mesmo ministério?

Se a nomeação de Flávio Dino para a vaga de Lewandowski tem o sentido de dar uma conotação política à escolha para o STF, como ressaltou Lula recentemente, isso não equivale a Bolsonaro anunciar que nomearia um ministro “terrivelmente evangélico” para representá-lo no Supremo?

Não é preciso entrar no mérito das nomeações, nem desqualificar os escolhidos, para entender que, enquanto o PT se mantiver na sua posição ideológica, sem se preocupar com as consequências de suas denúncias e acusações, continuará escancarando sua incoerência. Lula procura ampliar esse comportamento sendo mais flexível que o PT, que engole todas as decisões do grande líder.

Embora o governo de união nacional não tenha se viabilizado ainda, e Lula faça concessões às alas mais radicais esquerdistas, como no caso da acusação de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça, em Haia, o futuro do PT depende de Lula. Sem ele, o PT se transformará num partido menor, como PDT ou PTB. São reflexões provocadas pelas atitudes dos petistas diante da realidade, que é mais difícil do que supõe a vã ideologia.

 

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