terça-feira, 16 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Chuvas são inevitáveis; mortes, não

O Globo

Governo deve adotar planos eficazes de contingência e políticas de moradia que evitem áreas de risco

O ano mal começou, e as primeiras chuvas intensas já foram suficientes para demonstrar o despreparo das cidades brasileiras para enfrentar intempéries que tendem a tornar-se cada vez mais intensas e letais em decorrência das mudanças climáticas. As respostas a esses eventos previsíveis — e inevitáveis — têm sido insuficientes, como mostra a contagem de mortes depois de cada temporal.

Embora houvesse previsão de chuvas fortes no fim de semana, a cidade do Rio e os municípios da Baixada Fluminense se revelaram despreparados. Até ontem, as autoridades fluminenses contavam 12 mortos e dois desaparecidos. Vias essenciais, como a Avenida Brasil, tiveram de ser interditadas. Parte de um hospital na Zona Norte ficou alagada. Carros da polícia e do Corpo de Bombeiros não puderam deixar os quartéis devido à inundação.

O Rio reproduziu o drama de cidades paulistas na sexta-feira e no sábado, quando pelo menos duas pessoas morreram. Em São Bernardo do Campo, um morador foi soterrado pelo deslizamento de uma encosta. No município de Juquitiba, um menino morreu num carro arrastado para dentro de um córrego. Dias antes, um homem fora eletrocutado na capital durante um temporal que provocou alagamentos, quedas de árvores e corte de energia.

O ano de 2023 já havia sido trágico. O Rio Grande do Sul registrou recordes de chuvas, com mortes e prejuízos. No Litoral Norte de São Paulo, mais de 60 perderam a vida em deslizamentos de encostas provocados por temporais.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) estimou que 8,3 milhões de brasileiros viviam em áreas sujeitas a inundações ou deslizamento (2,5 milhões em áreas de alto risco). Ao longo de décadas, governos não agiram para mudar tal quadro. Nas grandes cidades, é conhecida a leniência com a ocupação irregular de encostas, um risco iminente. É verdade que algumas implantaram sistemas de emergência, como sirenes para retirar as famílias de áreas de risco. Mas eles são ainda insuficientes e, mesmo quando instalados, nem sempre funcionam.

Faltam ações para desobstruir rios, além de campanhas para conscientizar os moradores a não jogar lixo nos córregos, depois sujeitos a inundação. Há ainda carência nos serviços de limpeza e coleta de dejetos, essenciais para facilitar o escoamento. Sem consciência da população e empenho das autoridades, não há como melhorar.

As prefeituras precisam de planos de contingência eficazes para as situações de emergência. Na chuva que atingiu o Rio, houve casos de moradores resgatados em colchões e até em latas de lixo. Houve mortes por afogamento. Se há previsão de chuvas intensas, é fundamental que os municípios tenham protocolos para retirar com agilidade as populações que vivem nas áreas de maior risco, como encostas e imediações de rios. Agir depois não adianta.

Não há dúvida de que as chuvas têm sido excepcionais. Causariam estrago em qualquer parte. Com as mudanças climáticas, a tendência é haver piora na frequência e na intensidade. O remédio, ante tamanha fúria, é investir em prevenção, protocolos de redução de danos, treinamento — não só da Defesa Civil, mas também da população — e políticas habitacionais consistentes, capazes de retirar famílias de áreas de risco e levá-las a locais seguros. É preciso agir logo. Nada garante que as próximas chuvas serão diferentes.

Polícia e Exército não são solução duradoura para reserva ianomâmi

O Globo

Embora necessário, envio de tropas não exime poder público de criar alternativas ao garimpo ilegal

Combater garimpeiros ilegais na Terra Indígena Yanomami é tarefa das mais difíceis. Localizada nos estados de Roraima e Amazonas, a maior reserva indígena do Brasil tem área ligeiramente superior à de Portugal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva merece crédito por ao menos tentar combater os criminosos, em contraste com o governo anterior. No ano passado, repetidas operações de repressão obtiveram sucesso. O governo chegou a festejar, mas os efeitos foram passageiros. Para enfrentar a questão, Lula decidiu criar postos permanentes das Forças Armadas e da Polícia Federal na região. Embora necessária, a medida terá pouca chance de dar certo se não for acompanhada de outras.

Nos quatro anos do governo Bolsonaro, cerca de 20 mil garimpeiros ilegais agiram impunemente na reserva. Órgãos federais, expulsos pelos criminosos, deram pouca atenção aos ianomâmis. As mortes de crianças menores de 5 anos por causas evitáveis aumentaram 29%. A falta de comida, de remédios e o mercúrio usado pelos garimpeiros na água afetaram a saúde de toda a população. Casos de desnutrição, diarreia, dengue e malária dispararam.

Ao assumir, Lula montou um grupo interministerial, enviou equipes médicas para prestar assistência emergencial, criou um hospital de campanha em Boa Vista e determinou o envio de toneladas de medicamentos e alimentos pela Força Aérea Brasileira (FAB). Concomitantemente, uma força-tarefa composta de Forças Armadas, Polícia Federal e Ibama deu início ao combate aos criminosos. Em pouco tempo, cenas de indígenas atendidos por médicos e acampamentos ilegais abandonados às pressas tranquilizaram a opinião pública. Em setembro, o governo anunciou a redução de 80% na área atingida pelo garimpo ilegal. A celebração, porém, foi prematura.

No final do ano passado, os garimpeiros estavam de volta à reserva. Apesar de o espaço aéreo estar fechado, aviões de pequeno porte voavam de um lado para outro. Em dezembro, fiscais do Ibama constataram que um dos maiores garimpos da região voltara a operar. Não era o único. Nas palavras do ministro da Casa Civil, Rui Costa, é uma perseguição de gato e rato. Desde o início da greve do Ibama no início do mês, é provável que a situação tenha piorado.

Os garimpeiros voltam depois de avaliar as chances de ser pegos. Ao insistirem nas invasões, os empresários do crime e seus empregados comprovam que ainda vale a pena correr o risco pelo ouro. Por isso uma solução duradoura precisa atacar duas frentes. De um lado, criar novas oportunidades de trabalho para desestimular o apelo do garimpo à população local. De outro, reprimir de forma mais eficiente as ações criminosas. Não apenas na reserva, mas nas cidades, onde há um ecossistema para a venda do ouro ilegal, conserto e abastecimento de aeronaves, barcos e demais equipamentos. Só a presença permanente da polícia e dos militares na reserva não bastará.

Modelo de tarifas de energia precisa ser reavaliado

Valor Econômico

A energia que já sobra derruba os preços no mercado livre, enquanto eles não param de subir no mercado regulado

No fim de 2023, pouco antes do Natal, o presidente Lula aproveitou cerimônias como a entrega de habitações do programa Minha Casa, Minha Vida e uma celebração de catadores de reciclagem em Brasília para criticar o mercado brasileiro de energia. Lula mencionou o fato de grandes consumidores pagarem pela energia valor menor do que a tarifa cobrada dos mais pobres: “Três milhões de pessoas, que são os empresários, pagam um terço do preço que paga o pobre. É justo o rico pagar menos do que o pobre?". Lula repetiu números que o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, citou: de cerca de 90 milhões de consumidores, 3 milhões estão no mercado livre consumindo 45% da energia do país, pagando R$ 250 o megawatt-hora (MWh). Por outro lado, os demais consumidores, em torno de 87 milhões, pagam R$ 650 o MWh, em média.

As falas de Lula ocorreram um pouco antes de mais uma etapa da abertura do mercado livre de energia. Embora exista desde 1996, o mercado livre de energia elétrica, em que o consumidor pode escolher o seu fornecedor e estabelecer contratos por fonte, prazo ou preço, só estava acessível a menos de 38 mil empresas, com demanda acima de 500 quilowatts (kW), e contas acima de R$ 150 mil por mês.

A partir deste ano, por iniciativa do próprio Ministério de Minas e Energia (MME) poderão entrar no mercado livre consumidores conectados à alta e média tensão, com contas entre R$ 10 mil e R$ 15 mil por mês. Quase 13 mil consumidores já solicitaram a migração, de acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) junto às distribuidoras, entre os quais estão pequenas indústrias, padarias, hospitais, shoppings, redes de farmácias e supermercados, que vão assim ganhar competitividade e poderão reduzir seus preços.

Segundo dados da Câmara Comercializadora de Energia Elétrica (CCEE), dos 202 mil consumidores de alta e média tensão, há 38 mil que já estão no mercado livre e 93 mil que aderiram ao modelo de geração distribuída. Sobram quase 72 mil com potencial para aderir ao segmento livre pagando tarifas cerca de 40% menores do que a do mercado de energia distribuída pelas concessionárias, no chamado Ambiente de Contratação Regulada (ACR), do qual fazem parte os consumidores residenciais, de baixa tensão.

Lula promete que o assunto será discutido neste ano e encarregou o ministro Alexandre Silveira da tarefa. Espera-se que o debate seja sério. Politizar e polarizar o assunto, com um discurso estilo Robin Hood, em nada ajuda. É preciso discutir a questão a fundo para se exporem os motivos pelos quais a energia elétrica é tão cara, a começar pela distorção criada por sua companheira de partido, a ex-presidente Dilma Rousseff. Em 2012, ela resolveu reduzir o preço da energia na marra, antecipando a renovação das concessões das usinas hidrelétricas com a Medida Provisória 579. Em um primeiro momento, as tarifas realmente caíram 20%, mas recuperaram tudo já no ano seguinte. Para complicar, houve uma seca que esvaziou os reservatórios das usinas e colocou mais pressão nos preços.

Segundo cálculos da Aneel a iniciativa de Dilma causou um aumento de quase R$ 200 bilhões nos custos do setor, repassado para as tarifas, e incluiu subsídios para os consumidores de fontes incentivadas, como a energia eólica e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs).

A prática dos subsídios só cresce. Os preços da energia brasileira estão entre os maiores do mundo. Paradoxalmente, sobra cada vez mais energia. Apenas as de fontes eólica e solar saltarão dos 38 GW atuais para 100 GW em 2027, pouco inferior ao consumo total de 108 GW. Somadas às demais fontes de energia, o total da geração naquele ano será de 281 GW, “uma sobra cavalar, inédita em todo o mundo”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel (O Globo, 4 de janeiro). A energia que já sobra derruba os preços no mercado livre, a que poucos ainda têm acesso. A saída de mais consumidores do mercado regulado torna a conta mais salgada, pois os custos recairão sobre menor número de pessoas, que não podem escolher o mercado de menor preço.

A inserção de “jabutis” em medidas em discussão no Congresso é um dos vários mecanismos que resultam no aumento das tarifas. Geralmente são inspiradas pelos lobbies ligados a setores como transporte e distribuição de gás, geração distribuída e eólicas do Nordeste.

A mais recente iniciativa do tipo foi o projeto de lei 11.247/2018 das eólicas offshore, aprovado pela Câmara dos Deputados no fim de novembro com apenas 16 votos contrários, com emendas polêmicas que causarão um custo de R$ 25 bilhões ao ano nas tarifas, resultando em aumento de 11%, segundo a consultoria PSR. Há estimativas maiores, de até R$ 28 bilhões ao ano, de acordo com a Abrace. O PL, entre outros jabutis, permite a contratação de poluentes usinas térmicas a carvão até 2050 e prorroga por dez anos os descontos nas tarifas de uso de sistemas de distribuição para energias renováveis. Os subsídios que pousarão na conta do consumidor este ano são de R$ 37 bilhões. Em 2023, foram R$ 35 bilhões. Eles ampliam a sobra de energia, e a conta fica cada vez maior. É um modelo que precisa ser séria e urgentemente reavaliado.

Toffoli abre a porteira

Folha de S. Paulo

Decisões do Supremo que anulam ações contra corrupção deveriam ser colegiadas

Para a surpresa de ninguém que acompanhe o noticiário, a Novonor, nome de rebatismo da antiga Odebrecht, pleiteou no Supremo Tribunal Federal a suspensão dos pagamentos à União dos valores previstos no acordo de leniência que a empresa firmou em 2016.

A multa, de R$ 6,8 bilhões, foi fixada para ressarcir o erário pelos desfalques do esquema de corrupção confessado na esfera penal por 77 ex-executivos da companhia. Autoridades nacionais dos Estados Unidos e da Suíça selaram pactos concomitantes com a Odebrecht.

Não há indício de que norte-americanos e suíços estejam dispostos a voltar atrás nas sanções aplicadas. Já no Brasil uma larga porteira para a suspensão dessas reparações bilionárias foi aberta pela vontade monocrática do ministro Dias Toffoli, da corte constitucional.

O primeiro ato do solilóquio, embalado num libelo de bajulação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deu-se em setembro, com a anulação das provas colhidas pela Lava Jato que embasaram o acordo de leniência com a Odebrecht.

O ministro acatou o argumento de que os métodos empregados por procuradores e juiz da Lava Jato —expostos pela ação de um hacker— tornavam imprestáveis todas as provas da corrução escandalosa obtidas pela investigação. Não se acautelou de exigir análise detalhada de cada prova. Pressionou o botão da destruição em massa.

A decisão soou como toque de clarim para o ataque aos acordos de leniência. A primeira a avançar foi a J&F, que obteve de Toffoli a interrupção do ressarcimento à União —a despeito de o conglomerado manter sob contrato a mulher do ministro, advogada que atua numa disputa empresarial afetada pelos termos da leniência.

Agora a própria sucedânea da Odebrecht requer o benefício, na esteira do raide da J&F. Está fadada a consegui-lo, a julgar pela boa vontade do ministro com a causa.

É um despautério que um juiz singular do Supremo, com 11 integrantes, continue concentrando tamanho poder. Desfazer num rabisco o que dezenas de autoridades em várias instâncias judiciais e administrativas construíram em quase uma década deveria exigir necessariamente o convencimento de outros cinco colegas ao menos.

O atual presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, foi um dos que resistiram ao revisionismo açodado que está estimulando novamente a corrupção. Deveria ser do seu interesse levar ao plenário decisões monocráticas sobre o tema, como as de Toffoli.

O Congresso Nacional também tem legitimidade para aprovar leis que assegurem a colegialidade nas deliberações da corte suprema, desde que se paute por racionalidade e equilíbrio, não pela vingança.

O não de Taiwan

Folha de S. Paulo

Opositor de Pequim é eleito, mas urnas revelam mensagem ambígua na ilha autônoma

Os taiwaneses que foram às urnas no sábado (13) enviaram sinais ambíguos para a China, ditadura continental que considera a ilha autônoma parte de seu território.

O mais importante foi a eleição do atual vice-presidente, Lai Ching-te, para liderar o país nos próximos quatro anos. O político é um dos mais vocais opositores à pressão chinesa pela reintegração do país ao comando de Pequim.

O status político de Taiwan é complexo. A ilha foi governada por nacionalistas chineses, que perderam a disputa com os comunistas em 1949, e só transformou-se em uma democracia nos anos 1990.

Apenas 11 dos 193 membros da ONU a reconhecem como um país. De tempos em tempos, Pequim sinaliza que pode fazer valer sua vontade "manu militari".

Quando firmaram relações com os chineses, em 1979, os americanos reconheceram implicitamente a demanda de Pequim sobre Taiwan. Ao mesmo tempo, estabeleceram mecanismos pelos quais fornecem ajuda militar à ilha e sugerem proteção em caso de agressão.

Essa duplicidade estimula movimentos independentistas, embora Washington sempre reitere ser contra tal ruptura e defenda o diálogo com os chineses.

Nos últimos anos, visitas de altas autoridades americanas irritaram Pequim a ponto de ser constituído um regime permanente de pressão militar, com incursões aéreas e exercícios navais.

Em vez de tirar do poder o Partido Democrático Progressista (PDP), o ambiente conduziu Lai a um inédito terceiro mandato da sigla —um tapa na cara de Xi Jinping.

Entretanto o resultado não foi esmagador. O vitorioso teve 40,1% dos votos, ante 33,5% e 26,5% dos candidatos do Kuomintang chinês e do Partido do Povo de Taiwan (PPT), respectivamente.

Ambos os rivais, favoráveis a negociar a situação de Taiwan com a China, chegaram até a ensaiar uma candidatura conjunta contra Lai.

Além disso, o PDP conquistou 51 cadeiras do Parlamento, enquanto seus opositores somaram 62. Isso poderá dificultar a vida do governo.

Mais importante, sinaliza que o não a Pequim tem nuances. Ainda assim, prevalece a rejeição taiwanesa a uma adesão à China em termos análogos aos de Hong Kong.

Entregue por Londres em 1997, este território era orgulhosamente apresentado por Pequim como modelo de autonomia —até que, em 2020, os chineses rasgaram o tratado que a garantia até 2047.

Eis a conta do populismo tributário

O Estado de S. Paulo

Como era mais do que previsível, Estados começam a aumentar alíquota padrão de ICMS sobre bens e serviços para compensar as perdas de receitas com combustíveis, energia e telecomunicações

Diversos Estados brasileiros decidiram aumentar em até 2,5 pontos porcentuais as alíquotas modais do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) neste ano. Segundo reportagem publicada pelo Estadão, seis deles já começaram a cobrar mais e outros cinco pretendem fazê-lo até abril.

A alíquota modal corresponde ao padrão cobrado sobre a maioria dos bens e serviços. Hoje, ela varia entre 17% e 22%, a depender do Estado, segundo o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita, Tributação ou Economia dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz).

De maneira oportunista, alguns Estados das Regiões Sul e Sudeste chegaram a culpar a reforma tributária pelo aumento do imposto. Em carta divulgada às vésperas da aprovação da proposta pelo Congresso, os Estados afirmavam que a elevação da alíquota modal era uma resposta a um dispositivo que, tomando como base a média de arrecadação do ICMS entre 2024 e 2028, poderia comprometer suas receitas ao longo dos próximos 50 anos.

Era, por óbvio, uma desculpa para livrar governadores do ônus político de elevar a carga tributária. Mas o tiro saiu pela culatra, e os parlamentares optaram por retirar o trecho do texto final que foi a promulgação. São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul decidiram recuar, mas Paraná e Rio de Janeiro mantiveram os planos iniciais e vão elevar suas alíquotas modais em março.

Não cabe fazer um julgamento moral sobre os governadores, como se elevar o ICMS fosse uma decisão que definisse toda a atuação de um gestor público. Quem já elevou as alíquotas em seus Estados não é pior do que aqueles que somente voltaram atrás por causa da pressão popular – mesmo porque nada indica que essa decisão tenha caráter definitivo.

Fato é que a situação fiscal dos Estados, de maneira geral, está muito longe do equilíbrio. A exemplo da União, os Estados possuem certo grau de rigidez nas contas públicas, especialmente em gastos com servidores públicos e aposentadorias. Reformas podem estancar a curva de crescimento desses dispêndios, mas não costumam ter efeitos imediatos e requerem um apoio político difícil de ser obtido das Assembleias Legislativas.

Por isso, é prudente não aumentar essas despesas de maneira excessiva e não abrir mão da arrecadação necessária para sustentá-las. Foi o exato oposto do que se viu nos últimos anos. De forma irresponsável, os governadores optaram por aproveitar o fim da pandemia de covid-19 e a proximidade das eleições para contratar funcionários e conceder aumentos salariais. Em tempos normais, já seria algo questionável, mas o fato é que isso aconteceu em um momento em que as receitas eram atacadas em múltiplas frentes.

No Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidia que os Estados não mais poderiam cobrar alíquotas majoradas de ICMS sobre bens e serviços essenciais. No Executivo, o ex-presidente Jair Bolsonaro, já em campanha para a reeleição, iniciava uma cruzada pela redução dos preços dos combustíveis e culpava os Estados por reajustes ocasionados pelo aumento das cotações internacionais de petróleo. Pressionado, o Congresso aprovava leis que alteraram a tributação de bens e serviços que respondiam pela maior parte da arrecadação estadual.

O resultado não poderia ser outro: uma redução estrutural de receitas de mais de R$ 100 bilhões de um ano para o outro. No primeiro ano de mandato do presidente Lula da Silva, os Estados ainda contaram com o auxílio financeiro do governo federal para arcar com suas despesas. Mas essa ajuda não poderia durar para sempre, mesmo porque a União também tem um déficit fiscal para administrar.

Como já se sabia, o corte nas alíquotas de combustíveis, telecomunicações e energia era insustentável. E, agora, os Estados decidiram compensá-lo. A solução foi aumentar a alíquota padrão, ou seja, elevar a tributação de medicamentos, alimentos, bebidas, vestuário e calçados, entre muitos outros itens. O pior é que nem mesmo a nova alíquota modal será suficiente para recuperar todas as perdas, ou seja, vem mais aumento por aí. Eis a conta do populismo tributário.

Filantropia além dos números

O Estado de S. Paulo

O terceiro setor contribuiu com 4,27% do PIB brasileiro de 2022, segundo a Fipe. Mas a solidariedade com os mais vulneráveis deve ser incentivada como traço distintivo de uma grande nação

AConstituição de 1988 definiu como objetivos fundamentais da República, entre outros, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3.º, III). Em qualquer país do mundo, esse movimento civilizatório, para produzir resultados que garantam a todos os cidadãos acesso ao mínimo necessário para uma vida digna, não deve estar a cargo somente do Estado, mas também há de envolver organizações da sociedade civil, cada indivíduo, no limite de suas possibilidades.

No Brasil, um país tão profundamente desigual, essa integração em prol do bem comum torna-se ainda mais vital. Basta dizer que, malgrado terem sido alçadas àquela condição pelos constituintes originários há mais de três décadas, a pobreza e as desigualdades seguem tão presentes como marcas nacionais que não saem das páginas dos jornais, ainda pautam o debate público e inspiram toda sorte de políticas públicas e estudos acadêmicos.

Não poderia haver evidências mais eloquentes de que a Lei Maior está longe de ser cumprida no que concerne à dignidade da pessoa humana do que a renitência da pobreza e das desigualdades e a falta de incentivos para a consolidação de uma cultura de solidariedade e responsabilidade social no País. Isso não só pode, como deve mudar, pois, como lembrou em entrevista ao Estadão a diretora executiva do Movimento Bem Maior, Carola Matarazzo, diminuir as desigualdades, não apenas de renda, assim como preservar o meio ambiente, entre outras agendas humanitárias, são garantias de que haverá “um planeta para se viver” no futuro e pessoas vivendo com dignidade.

Nos últimos anos, a participação de empresas do chamado terceiro setor no combate às desigualdades no País tem se revelado um tanto mais estratégica, vale dizer, não limitada por uma ideia segundo a qual filantropia não seria mais do que mera distribuição de dinheiro dos mais ricos para os mais pobres. A diretora do Movimento Bem Maior, que reúne 11 altos executivos dos mais diversos segmentos econômicos, observou que “doação não é caridade, é investimento”. Ou seja, iniciativas como financiamento de pesquisas e apoio institucional a projetos relevantes para o País também fazem parte de uma abordagem mais moderna de filantropia que, se for devidamente incentivada, pode gerar bons frutos para o País.

O povo brasileiro já deu inúmeras mostras de que é vocacionado para a solidariedade. Se ainda havia dúvidas quanto a isso, a pandemia de covid-19 tratou de saná-las. Hoje, contudo, o grande desafio da sociedade é reacender essa chama; é resgatar o espírito solidário, em todos os níveis, como algo que transcende momentos de crise. Sem isso, será impossível estabelecer uma base sólida para o florescimento da cultura da filantropia como um dos eixos do desenvolvimento inclusivo e sustentável de que o Brasil tanto carece.

É inegável que a pandemia catalisou a solidariedade, revelando a face mais compassiva dos brasileiros. Doações inauditas trouxeram alívio imediato para milhões de necessitados. Só o Movimento Bem Maior angariou, em 2021, no auge da emergência sanitária, R$ 7 bilhões. No entanto, a sustentabilidade dessas ações e a manutenção do ímpeto filantrópico após o período crítico da pandemia tornaram-se preocupações relevantes para os que dependiam – e continuam dependendo – da caridade alheia para viver.

O desafio, pois, não é apenas aumentar o volume de doações, mas sim criar um ambiente propício à continuidade dessas contribuições. O terceiro setor é extremamente importante para o País e precisa ser estimulado. Um estudo da Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), ligada à FEA-USP, mostrou que as empresas que atuam no terceiro setor, isto é, que desenvolvem atividades assistenciais e filantrópicas e empregam cerca de 6 milhões de pessoas, representaram 4,27% do PIB brasileiro em 2022.

Para além de números e estratégias corporativas, porém, é forçoso lembrar que a solidariedade com os concidadãos mais vulneráveis é um dos traços mais distintivos da grandeza de uma nação.

Uma cômoda dependência

O Estado de S. Paulo

Exportações para a China superam R$ 100 bi; baixa diversificação demanda mais ousadia

Não deixa de ser auspicioso o fato de as exportações brasileiras para a China terem cruzado pela primeira vez a vistosa fronteira dos US$ 100 bilhões, como sublinhou a Secretaria de Comércio Exterior (Secex) na divulgação da balança comercial de 2023. Há menos de 30 anos, o Brasil sonhava com esse valor para o total de seus embarques. A perspectiva de o governo Lula da Silva ver esse resultado ainda mais robusto neste e nos próximos anos, entretanto, está entremeada por justas preocupações em torno da diversidade e da qualidade de seu comércio exterior. A dependência cada vez maior em relação ao mercado chinês, consumidor quase exclusivo de três commodities brasileiras, é a principal delas.

A China foi o destino de 37,2% das exportações brasileiras em 2023, quase exclusivamente de commodities. Há 18 anos, não passavam de 10%, como informou recente reportagem do Estadão. A escalada deu-se em paralelo à redução da participação de mercados que, tradicionalmente, absorvem manufaturas brasileiras, em especial os Estados Unidos e a Argentina. O resultado mais visível dessa equação está na presença da indústria de transformação nos embarques do País, que caiu de 66,2%, em 2016, para 52,2% no ano passado. Pode-se concluir que a qualidade das exportações brasileiras, medida pelo seu valor agregado, recuou.

É certo que, no comércio exterior, muito vale a pressão da demanda. A voracidade chinesa por minério de ferro, alimentos in natura e petróleo – os principais bens brasileiros escoados para a China – tem sido satisfeita pela alta produtividade da soja e outros grãos e da mineração do País. O benefício, entretanto, está longe de ser totalmente mútuo. Primeiro, pela resistência histórica da China em adquirir os produtos acabados do Brasil – em vez da soja, mais carnes; em vez do minério, chapas e bens siderúrgicos. Segundo, porque, no setor de commodities, as condições dos importadores valem bem mais do que as expectativas dos exportadores. Em linguagem comercial, o País se mantém na condição de “vendido” diante da China.

Será difícil Pequim ceder nesses padrões, que tanto beneficiam sua economia. Mas nada impede um esforço concentrado do governo e do setor privado brasileiros para buscar outros mercados para suas commodities e, especialmente, para seus produtos com maior valor agregado. Na pauta exportadora do Brasil, não faltam bens altamente competitivos no agronegócio e na indústria de transformação. Nem outros setores cuja atratividade externa possa ser alavancada pelo uso comprovado de energia limpa e pelo respeito a normas ambientais.

É indiscutível que o embarque recorde para a China contribuiu significativamente para o superávit total da balança comercial de US$ 98,8 bilhões em 2023. Mas manter ou ampliar a dependência brasileira da demanda chinesa exclusiva por commodities não deixa ser uma lógica comodista. Passou da hora da adoção de políticas públicas e de demonstração de maior ousadia do setor privado para agregar valor às exportações e diversificar os mercados do Brasil.

A importância da vacinação

Correio Braziliense

O CFM tem por obrigação zelar pelo bom funcionamento da saúde no país. Levantar suspeitas sobre um fármaco tão importante e comprovadamente seguro soa, no mínimo, estranho

O Ministério da Saúde, acertadamente, decidiu incluir a vacina contra a covid-19 para crianças entre 6 meses e 5 anos no Plano Nacional de Imunização (PNI). A decisão foi baseada em estudos científicos profundos, que comprovaram a eficiência do fármaco para conter o avanço do novo coronavírus. Somente no ano passado, 135 meninas e meninos nessa faixa etária morreram vitimados pelo vírus. E a razão principal para os óbitos foi a não vacinação.

Infelizmente, um movimento mundial contra a imunização tem levado pais à falsa ideia de que vacinas fazem mal à saúde. Isso a despeito de todas as provas, acumuladas ao longo de décadas, de que esses medicamentos foram fundamentais para erradicar várias doenças e, praticamente, dobrar a idade média de vida da população. No Brasil, antes da vacinação em massa, os cidadãos viviam, em média, pouco mais de 40 anos. Agora, a longevidade chega aos 80. Nunca o país teve tantos centenários, todos vacinados desde a infância.

Pois a onda de inverdades sobre a vacina ganhou, na semana passada, um estímulo para os pais que aderiram ao movimento antivax. O Conselho Federal de Medicina (CFM), pela primeira vez em sua história, decidiu fazer uma pesquisa questionando a comunidade médica sobre o que acha da decisão do Ministério da Saúde de incluir a vacinação de crianças menores de 5 anos contra a covid no Plano Nacional de Imunização. Foi como se o órgão atiçasse fogo no palheiro da desconfiança.

Dado o papel institucional que possui, o CFM tem por obrigação zelar pelo bom funcionamento da saúde no país, inclusive punindo médicos que colocam em risco a vida de pacientes. Mas levantar suspeitas sobre um fármaco tão importante e comprovadamente seguro soa, no mínimo, estranho. Será que o mesmo questionamento será feito, por exemplo, em relação à eficiência da importantíssima vacina contra a dengue, que tem matado como nunca no país? Um tema tão relevante, como o Plano Nacional de Imunização, que é modelo para o mundo, deve ser debatido com toda a responsabilidade possível, sempre no sentido de aprimorá-lo, não no de levantar dúvidas a algo comprovadamente bom para a população.

O debate em torno da pesquisa lançada pelo CFM sobre a vacina contra a covid está movimentando os médicos, a maioria se posicionando contra o questionário. Uma das vozes mais contundentes contrárias ao Conselho está sendo entoada por Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Para ela, perder um filho, uma filha ou um neto para uma doença que pode ser evitada por meio da vacinação é inaceitável. Portanto, é preciso apoiar o Plano Nacional de Imunização, não colocá-lo sob suspeição.

As pesquisas desenvolvidas pelos laboratórios e pelas universidades em busca de proteção para todo tipo de doença estão cada vez mais avançadas, e os resultados aparecendo em prazos menores — até bem pouco tempo, para um imunizante ser incorporado pela rede pública, eram necessários cerca de 10 anos, desde a comprovação de sua eficiência. Mas técnicas cada vez mais modernas, às quais será adicionada a inteligência artificial, reduzirão esse tempo. Há que se ressaltar: não fosse a rapidez na descoberta da vacina contra a covid, a catástrofe da pandemia teria sido maior.

O Brasil perdeu mais de 700 mil vidas durante a pandemia. Certamente, muitas poderiam ter sido salvas se a vacinação tivesse ocorrido mais rapidamente. Diante disso e com toda a segurança dos imunizantes que estão à disposição, ninguém de bom senso pode aceitar que qualquer pessoa morra porque não teve a oportunidade de se proteger. Num mundo em que as notícias falsas se disseminam na velocidade da luz, o desafio de todos, autoridades, médicos, pais, educadores, deve ser no sentido de proteger a vida. E vacinas salvam vidas.


 

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