segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Miguel de Almeida - A fome do pão e do ouro

O Globo 

É um avanço de várias casas a prisão e condenação dos golpistas bolsonaristas

Numa escala de 1 a 10, ainda não chegaram aos presídios os peixes graúdos do Golpe de 8 de Janeiro. Estamos no 3, no momento. As celas reúnem alguns bagres desatentos, outras tilápias distraídas e um ou outro dourado de olhos estalados. Um ano depois da patriotada, as investigações por enquanto não cercaram o pacu estrelado ou o lambari endinheirado. A piaba da barra permanece em suspensão.

Pode soar frustrante, mas, no Brasil da contemporização e do perdão obsequioso, é um avanço de várias casas a prisão e condenação dos golpistas bolsonaristas. Até então, as tentativas de subversão criminosa vindas da direita — civil ou militar — logo recebiam um tapinha nas costas e alguma anistia em nome da nefasta e covarde concórdia. Como prêmio, e porque ninguém é de ferro, vinha uma aposentadoria especial.

A patuscada de 1935, de cepa de esquerda, resultou na prisão dos líderes, a começar por Luiz Carlos Prestes. Mas tantos documentos depois, discute-se se a Intentona Comunista não surgiu de um ardil de Getúlio Vargas para golpear a democracia em 1937, com a implantação do Estado Novo — e a censura e as mortes que se seguiram em seu rastro de desonra.

A prisão de centenas de golpistas no 8 de Janeiro de 2023, e a condenação de quase uma dezena deles até o momento, com vários outros ainda em espera no corredor, define outro Brasil, talvez encerrando ali — aqui meu inesperado excesso de otimismo — nossa República bananeira. Típico de um romance surreal latino-americano, a desmerecer nossa autoestima, o golpe vinha incensado por um ex-militar de muito baixa patente — no paralelo civil, equivalente ao ensino fundamental inconcluso —, nem sequer um general; só que o discurso, em tons puídos (Deus, pátria e família), bateu num país um pouco mais moderno, diferente da terrinha de 1964, esboroada pela inflação e amedrontada pelo comunismo da Guerra Fria. Na época, os brasileiros, com ajuda da propaganda americana, sabiam identificar um comunista; hoje, não. Os bolsonaristas tiveram de conceder que Flávio Dino possa ser um comunista cristão! E Lula, convenhamos, nunca foi de esquerda.

Antes de tudo, a catilinária sem ortografia do bolsonarismo, com seu apelo à liberação das armas e à rejeição ao aborto, mais sua homofobia e misoginia também criminosas, chamou às manchetes aquilo que a Zona Sul coloca sob o tapete e o que Oswald de Andrade, na década de 1920, classificou como “um país dando adeus” — o Brasil do samba é conservador, onde até os ex-comunistas são cristãos. Conservador e violento, como os bons religiosos.

Mas onde a esquerda identitária, aquela que estende a corda para impulsionar a polarização, permanece em estado letal, à semelhança da extrema direita. Haja vista a contaminação do Censo 2022: embora cerca de 10% se declarem pretos, outros 45% se identificam como pardos (nossa miscigenação!) — resultado do baticum ideológico e da matemática néscia: o Brasil é um país preto. Como diz Nélida Piñon em seu derradeiro e belíssimo “Os rostos que eu tenho” (de onde tiro o título desta coluna), somos “sobretudo mestiços”. E injustos: entre nós, a pobreza perdeu seu status político para a invenção da raça, um conceito de direita.

São os dois Brasis — da patriotada e dos identitários; da extrema direita e da esquerda oportunista —, cada qual a seu modo, patrimonialistas. Além de autoritários, ao misturar o Estado com a sociedade, quando se usa o aparato estatal para subjugar as liberdades individuais em nome de uma fé e de uma religião.

Ainda assim, mesmo com dezenas de patriotas presos e condenados, os bolsonaristas, como a própria esquerda identitária, não compreenderam o que significou o 8 de Janeiro. A tal polarização é um grito, a ser ouvido, de um arcaísmo renitente que opõe o velho e o novo no Brasil, desde sempre, desde o Império, desde os gabinetes conservadores aos liberais.

Foi uma tentativa de golpe, sim, dentro dos velhos moldes, do tipo quartelada fora de moda; mas por que deu errado? Por que os golpistas não foram amparados pelos militares bolsonaristas? Por que durante mais de uma hora o Brasil achou que aquela turba ignara poderia ditar nosso futuro? Não houve eco ao Deus, pátria e família. Em resposta, veio um urro. O que os mal-ajambrados propunham fora derrotado nas urnas, mesmo sob o peso do uso da máquina governamental. O erro do perdão aos torturadores do regime militar, em nome da afamada comunhão, enfim, produziu um país disposto a buscar futuro.

 

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