O Globo
Nossa aversão à impessoalidade chega às raias
da repulsa. De tal modo que a regra universal é tida como desgraça ou castigo
Salta aos olhos a trivialidade da expressão
acima. No entanto, quanto mais a usamos, menos penetramos em seu significado.
Veja como ela pouco diz traduzida para o inglês, justamente porque, como diria
Gilberto Freyre, ela — como o carnaval — é um “brasileirismo”.
É um “conhecer cultural” inscrito no nosso
inconsciente. Na escondida hierarquia das nossas relações sociais, e no modo
como as vivenciamos.
Todos conhecem X, mas nem todos podem dizer
com orgulho, revelação ou desprezo: “Esse eu conheço!” — o que equivale a
revelar um elo pessoal. Um laço instaurador de um conhecimento íntimo,
cotidiano e familiar. Tudo o que socialmente faz diferença, porque afasta o
demônio do informal e do impessoal que não sabe quem somos.
Realmente, nossa aversão à impessoalidade chega às raias da repulsa. De tal modo que a regra universal é tida como desgraça ou castigo, jamais como regulador informal de um hábito ou costume.
Como o tal sinal vermelho que fechou
justamente “contra” mim! Ouvi esse absurdo numa pesquisa sobre o trânsito, uma
esfera social que — como a economia ou o Direito — opera por meio de normas
gerais que valem para todos, inclusive para quem tem carro importado ou “se
acha” melhor, mais rico, mais importante e, por nobreza autoatribuída, é
dispensado de seguir os hábitos “deprimentes” como entrar numa fila (veja-se o
livro “Fila e democracia”, Editora Rocco, escrito com Alberto Junqueira).
O vandalismo pode ser visto como um clone
perverso dos privilégios abusivos das elites que — para começo de conversa —
imaginam não cometer crimes e, se criticadas, sentem-se vítimas de mentiras,
tramoias, má-fé e, como bem definiu nosso primeiro mandatário, “mancomunações”.
Aliás, um lado meu quase diz “macumbas”,
reveladoras dessa naturalidade de seguir certos costumes, mas achar absurdo
cumprir leis que são formalidades reguladoras de costumes, como as normas do
trânsito ou as regras de comensalidade ou de controle financeiro. Como não
arrotar, roubar o Erário ou, exceto no carnaval, mijar na rua.
Leis e costumes devem ser coerentes, mas
temos leis que inutilmente proíbem o avunculato — numa demonstração notória do
“esse eu conheço” — e, assim sendo, trago-o de volta, apesar de sua
desonestidade ou incompetência.
Eis um conhecer que desmonta qualquer sistema
fundado na norma do prêmio ao mais competente e de justiça ao criminoso. Pois a
competência — essa inimiga da incapacidade de sanar a pátria desenhada para ser
roubada — exclui os que Nélson Rodrigues chamava de “bestas quadradas”, e eu
tenho testemunhado como “burros doutores”...
Mas o pior é que todos são “conhecidos”
daquele “eu” que é o dono dos donos do poder. Do mandão geral que não erra e de
quem todos puxam o saco, naquele cordão que jamais termina, como diz a
marchinha de 1945, criada por Roberto Martins e Eratóstenes Frazão. Marchinha
definitiva como teoria da esfera política brasileira. Um “marchar” revelador de
como o “cordão” ou partido dos puxa-sacos (apadrinhados, compadres,
companheiros etc.) dão vivas a seus maiorais e, no outro verso, crava a
vergonhosa verdade que estão nos impingindo: a interminável repetição como
apagamento da História: Quem
está na frente é passado pra trás, e o cordão [seria melhor
dizer partidos] dos
puxa-sacos [dos esses eu conheço!] cada vez aumenta mais.
Como eu disse — puxa vida — há 45 anos, em
“Carnavais, malandros e heróis”, Editora Rocco, o carnaval ritualiza nossas
verdades verdadeiras. Pois em sua forma, ritmo e discurso, em sua aliança entre
o legal e o impessoal, no consentimento festivo da competição que todos
entendem, ele aponta como não conseguimos escapar das repetições que uma
estúpida polarização formaliza. E, de quebra e lambuja, desmascara quem são as
eminências e excelências que — à direita e à esquerda, em cima e embaixo —
reinam entre nós.
Verdade.
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