O Globo
Pregação de Haddad contrasta com reabilitação
de compadrio petista e velhas práticas de governos anteriores
O ministro Fernando Haddad está convencido de
que o fim de privilégios e benefícios de diversas naturezas, sobretudo fiscais,
concedidos a grupos setoriais não reverteram em ganhos para o conjunto da
sociedade que justifiquem a União abdicar de bilhões em arrecadação que
poderiam ajudar a colocar as contas no lugar e o governo a fazer os
investimentos nas prioridades enunciadas por Lula na campanha.
Trata-se de uma posição clara,
principiológica, de que se pode divergir em parte ou no todo, mas que demonstra
um compromisso com uma linha de condução do Ministério da Fazenda voltada para
uma gestão fiscalmente responsável, o que vem agradando ao mercado e ao setor
produtivo.
Mas há uma tremenda incongruência, capaz de derrubar o discurso do ministro, nas ações cada vez mais explícitas do presidente, do PT e de vários outros ministérios no sentido oposto: canalizar os privilégios para aqueles mais próximos, criando novas castas e novas discrepâncias.
Não se trata de novidade, aliás. O que
surpreendeu muita gente foi o norte dado por Haddad a sua pasta, isso sim.
Quanto ao que vem sendo chamado nos últimos dias mais generalizadamente de
capitalismo de Estado, esta foi uma marca dos governos anteriores do PT, que,
muitas vezes, descambou para esquemas de corrupção e desperdício de bilhões em
dinheiro público em projetos megalômanos, ideologicamente motivados, que muitas
vezes não chegaram nem a ser implementados.
O surpreendente e preocupante é que o
presidente tenha entendido que sua vitória em 2022 se deu porque a sociedade
avalizou a volta dessa política. De duas, uma: ou Lula e o PT não entenderam a
natureza de sua volta ao poder, ou resolveram dar uma banana à promessa de uma
frente ampla para vencer as ameaças à democracia e achar que poderiam apenas
voltar ao que era antes, inclusive compensando companheiros que só segundo sua
régua foram injustiçados ou coisa que o valha.
A ação escancarada do presidente, usando um
ministro como garoto de recados, para aboletar Guido Mantega no comando da
Vale, uma empresa privatizada há 26 anos, mostra um político esquecido das
circunstâncias que o reabilitaram eleitoralmente depois da reabilitação
judicial.
Não é viável por quatro anos sustentar um
governo em que Haddad seja a face responsável para, na camada de baixo, tentar
restabelecer mecanismos que deram errado no passado.
A defesa de subsídios que vão da construção
de navios (prioridade nacional em 2022?) a querosene de aviação, projetos
impulsionados pelo BNDES, e gastos bilionários em refinarias e noutras plantas
que já drenaram outros tantos bilhões décadas atrás não estavam na plataforma
de campanha do Lula de 2022.
Ele foi escolhido por grande parcela de um
eleitorado refratário ou no mínimo desconfiado em relação ao PT pela
necessidade mais premente de remover Jair Bolsonaro do poder pelo risco que ele
representava à democracia, à saúde pública, ao meio ambiente e a outros
aspectos essenciais da vida em sociedade. A estarrecedora revelação de uma Abin
paralela para prestar serviços diversos ao aspirante a autocrata apenas
comprova que as razões para preocupação eram concretas e graves.
Seguir ostensivamente pela vereda do “vão ter
de engolir”, válida para Mantega na Vale e para o retorno dos projetos do
Estado gastador, pode ser um caminho sem volta para o presidente experimentar o
que vem acontecendo há anos na Argentina e agora ameaça ocorrer nos Estados
Unidos: a alternância a cada eleição entre esquerda e direita, pelo fato de
ninguém conseguir furar a polarização e ampliar seu eleitorado.
Haddad demonstrou ter clareza desse risco
desde 2018 e repetiu isso na última semana no Roda Viva. Sabotá-lo ou usá-lo de
cavalo de Troia para o projeto oposto ao seu é o pior dos caminhos possíveis.
Vera entende do riscado.
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