O Globo
Atos como o desta segunda-feira, para marcar
efemérides históricas, sejam elas virtuosas ou infames, como o 8 de Janeiro,
são benéficos para a Histórica e educativos para a sociedade. Assim, feriados
em datas de grandes tragédias ou guerras, ou museus como o do Holocausto, o de
Hiroshima ou de diferentes ditaduras mundo afora têm o caráter de evitar que
esses eventos sejam esquecidos, minimizados ou repetidos.
O grande problema é quando o caráter cívico e institucional descamba para a partidarização, porque isso tisna o objetivo e dá munição aos que tentam desvirtuar os fatos. A solenidade desta segunda-feira teve o mérito de se inscrever na primeira modalidade, mas teve momentos em que incorreu na armadilha da politização.
Foi Lula que, no último dos discursos,
forneceu à oposição bolsonarista os recortes de que precisava para dizer que o
ato era uma “celebração” “petista" à “baderna" de um ano atrás, que,
por sua vez, não teria nada a ver com Jair Bolsonaro. Ou seja: uma série de
falsificações históricas que se valem dos detalhes para tentar confundir a
opinião pública.
Todos os oradores que precederam o presidente
tiveram a inteligência e o cuidado de não citar Bolsonaro. Pesquisas nos dias
anteriores, como a da Quaest, ou divulgadas ontem mesmo, como a do instituto
Atlas, mostram que o repúdio ao 8 de Janeiro é generalizado na sociedade, mas a
imputação de responsabilidades é algo ainda em disputa. E as narrativas se
prestam justamente a atuar nesse terreno, que é o mesmo da polarização.
Nesse sentido, Lula joga contra o patrimônio
dando pano para manga para aqueles que, cinicamente, tentam imputar às vítimas
a responsabilidade por uma tentativa de golpe — sim, houve uma clara
deliberação de se buscar uma ruptura institucional, e o outro mérito de
efemérides é revisitar imagens, documentos e processos.
Ele ajuda, assim, não a romper, mas a
cristalizar a polarização, para usar o termo que vem sendo usado na literatura
internacional e, aqui, está bem explicado na obra recente de Felipe Nunes e
Thomas Traumann, “Biografia do Abismo”.
Esse risco de que a coisa descambasse para a
partidarização, presente desde a concepção do ato e agravado pelo fato de o
Planalto ter concentrado a sua organização, ajuda a explicar por que Arthur
Lira decidiu de última hora não ir à cerimônia desta segunda. E ainda que
pareça que Lula não ligou ou até gostou da ausência, ele deveria, de novo, dar
alguns passos atrás e pensar que a democracia pode até ter escapado inabalada,
mas há um dia seguinte e ele pressupõe que haja governabilidade na Câmara.
Deveria acender um sinal amarelo no Planalto
o fato de que não foi só o deputado alagoano a faltar ao ato, mas toda a cúpula
da Câmara. Com a necessidade de regulamentação da reforma tributária, mais
vetos indigestos na pauta e a contrariedade (comum ao Senado, aliás) com a MP
da reoneração, qualquer ruído com o Legislativo agora é pedir um segundo ano de
mandato mais complicado que o primeiro.
Passada a necessária rememoração da infâmia de 2023, o governo tem de ser estratégico a ponto de deixar Bolsonaro e os bolsonaristas com a Justiça e a Polícia Federal e cuidar de remontar sua base para lá de esgarçada no Congresso. Isso vai requerer descer do palanque, engolir Lira e olhar para a frente.
Pois é.
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