Folha de S. Paulo
Quem tem fome não tem doutrina econômica preferida,
tem é urgência
Se uma pessoa é pobre ou vive na miséria,
continua um bom negócio votar na esquerda?
Os defensores do liberalismo econômico argumentam que a esquerda não resolve
efetivamente o problema dos pobres, por ser incapaz de gerar riqueza. Na visão
deles, tudo o que a esquerda consegue fazer é socializar a pobreza ou criar
Estados que acodem os pobres, nada mais.
No entanto, esse tipo de argumento, seja
verdadeiro ou falso, raramente se torna uma "razão de voto" para os
mais vulneráveis da sociedade. Quem tem fome e vive na precariedade, com a vida
por um fio, não tem doutrina econômica preferida, tem é urgência.
É nessa perspectiva a minha indagação sobre se os pobres continuam tendo boas razões para votar na esquerda. Intuitivamente, pareceria que sim. Afinal, até onde meu conhecimento alcança, ser de esquerda consiste em priorizar a igualdade, inclusive a igualdade econômica.
A questão é que há muita gente se esforçando
para convencer os pobres de que a esquerda não é um bom negócio. Conservadores
de direita insistem com os pobres, com bastante sucesso há alguns ciclos
eleitorais, que colocar a pobreza como principal razão para sua decisão
eleitoral é um erro: mais importante do que escapar da pobreza é a vida moral.
Uma conclusão coerente em um universo em que
já se aceitou a tese da equivalência entre a esquerda e a corrupção.
Corrupção moral, que fique bem claro. Nesse caso, mais vale salvar sua alma
imortal do que compactuar com a imoralidade por uma Bolsa Família.
Além disso, governos de esquerda, mesmo que
programas sociais e iniciativas para aumentar emprego e renda causem um impacto
significativo, não apresentam soluções consistentes para superar a pobreza, nem
a curto prazo, nem de maneira sustentável ao longo do tempo. A pedra que nos
governos Lula se
empurrou ladeira a cima, rolou de volta no governo Dilma e continua lá embaixo.
Se você, como eu, não gosta do raciocínio,
isso não tem a menor importância. Não apresento a realidade de que eu goste.
Basta não ser cego para notar que muitos brasileiros pobres e miseráveis
consideram a moralidade como fator decisivo para o voto, em vez de políticas
sociais destinadas a combater a pobreza.
Sabe quem mais está fazendo um esforço
significativo para comunicar aos pobres que a esquerda deixou de ser uma opção
vantajosa? A própria esquerda. Ou pelo menos uma parte dela que hoje faz muito
barulho no governo e no debate público. Essa parcela transmite incessantemente
a seguinte mensagem: a razão principal para o voto não deve ser seus interesses
de classe, mas sim sua identidade racial, de gênero e orientação sexual.
Se você é pobre e miserável, mas também
preto, trans,
mulher e homossexual, tudo bem; no entanto, se for pobre e não pertencer a
qualquer uma dessas identidades, você é parte do problema. Eu não sou um homem,
branco, heterossexual e cisgênero, mas se o fosse —e adotasse a minha
"identidade" como principal razão eleitoral, como os identitários
propõem— é provável que não votasse em uma esquerda que nada tem a me oferecer
a não ser culpa e exigências de compensação por delitos que julgo não ter
cometido.
No caso racial, se você pensar que apenas
10,2% dos brasileiros se identificam como pretos, 43,5% acham que são brancos,
enquanto 45,3% consideram que não são nem pretos nem brancos, é muita gente
deixada de fora do barco da nova esquerda. Se você disser a uma população
formada desse modo que ela precisa votar "como negro", condição com a
qual cerca de 90% das pessoas não se identifica, e não "como pobre",
os resultados são previsíveis. Façam as contas.
No entanto, é disso que se trata.
Recentemente, foi noticiado que metade dos concluintes do Ensino Médio no
Brasil não participou das provas do Enem. Esse é, sem dúvida, um dos dados
significativos para qualquer projeto que pretenda enfrentar efetivamente o
problema da pobreza no país. Fora um registro de perplexidade do ministro da
Educação, o escandaloso dado praticamente escapou ao debate público.
Como ninguém "racializou" o fato de
que metade dos nossos estudantes interrompeu sua formação, condenando-se
automaticamente a uma vida muito mais difícil, o assunto foi deixado de lado.
Em vez disso, o foco central da discussão foi a ministra da Igualdade Racial
explicando enchentes e desigualdade urbana com base no racismo.
Adeus Marx, a luta racial explica tudo, a
luta de classes nada esclarece. Sobretudo, não vote com base na sua condição de
pobre, vote com o racismo em mente.
Vai dar muito certo, confia.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Perfeito.
ResponderExcluir