quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Wilson Gomes* - Uma agenda de Ano-Novo

Folha de S. Paulo

É fundamental aceitar que conservadores representam interesses legítimos

De tanto ouvir a objeção de que só sei apontar o dedo para o comportamento da esquerda, sem nunca indicar caminhos, resolvi mostrar que sou mais que um comentarista rabugento. Tomei a liberdade de escrever cinco propostas de Ano-Novo para esquerdistas e progressistas, começando hoje com essas duas abaixo.

Em primeiro lugar, é fundamental aceitar de uma vez por todas que os conservadores não apenas representam interesses legítimos presentes em sociedades pluralistas, como também possuem uma legitimidade democrática tão válida quanto a de qualquer outra posição política. Se na democracia, há lugar para a esquerda e para progressistas, tem de haver lugar também para a direita e para conservadores. É simples assim.

Ademais, conservadores constituem uma força política consistente, que não dá sinais de desaparecimento ou redução em um horizonte próximo. Antes, continuam a prosperar eleitoralmente, mantendo um foco claro na conquista de mandatos parlamentares.

Notadamente os de matriz evangélica popular, adotam uma estratégia eleitoral eficiente e de longo prazo, com uma base organizada, ampla capilaridade e presença em áreas onde outras forças políticas têm dificuldade de entrar, como as comunidades dominadas por facções. E sabem mobilizar e direcionar votos populares como só católicos e sindicalistas foram um dia capazes de fazer.

Além disso, a pressa, a raiva e a rivalidade explícita dos identitários de esquerda funcionam como um estímulo formidável para mobilizar eleitoralmente a massa conservadora. O pânico moral instigado pelo medo que incutem os identitários faz com que critérios morais sejam postos no topo das prioridades eleitorais de amplos estratos da população.

Obviamente, não há condições políticas reais no horizonte para que progressistas estabeleçam sociedades à sua imagem e semelhança. De modo que ou há um reconhecimento recíproco de que conservadores e progressistas existem de fato e de direito e nenhum deles será eliminado, ou se radicaliza o conflito.

Essa escalada já está produzindo resultados evidentes, com conservadores se transformando em reacionários e alimentando os extremismos de direita, e com o declínio eleitoral da esquerda que privilegia suas cruzadas morais identitárias em detrimento da conquista de mandatos.

Em segundo lugar, impõe-se a humildade da escuta. Abandonar a autorreferência e se abster de expressões como "a sociedade precisa entender que" torna-se fundamental. É a esquerda que realmente "precisa entender" as pessoas reais. Em especial, é crucial considerar as aspirações e reivindicações daqueles que recentemente optaram por votar em candidatos conservadores, seja da direita ou da extrema direita.

Apesar da retórica envolvente sobre o povo, os "de baixo" e as vítimas que a esquerda pretende representar, ela está sempre ensinando, sem efetivamente ouvir ou prestar atenção. O ato de ouvir não implica necessariamente em concordância, mas sim em uma séria consideração do que está por trás dos discursos e das escolhas alheias.

Tomemos o tema do crime urbano para ilustrar. Não comove ninguém, além dos coletivos militantes de esquerda, a cartada de que os autores dos arrastões, por exemplo, são "gente de favela", logo inimputáveis, dado que a violência estrutural teria vindo antes do chute nas costelas do morador do bairro, derrubado e saqueado.

O argumento, inclusive, será considerado um desrespeito ao morador real das favelas que rala todo dia e suporta a dureza da vida sem se render ao crime. A cartada dos "corpos negros historicamente subalternizados" tampouco comove além da militância identitária, pois todo mundo viu os vídeos e todo mundo montou em sua cabeça um perfil do membro das gangues que barbarizam a cidade.

Quem enfrenta a violência diariamente não precisa que lhe digam quem temer; a experiência é a melhor professora. Mesmo assim, a esquerda insiste em querer dar aulas às vítimas sobre a dor que elas sentem.

A esquerda que tanto se identifica com as vítimas deveria antes de tudo tentar entendê-las, genuinamente. Os seus medos, suas urgências, seu desespero, suas demandas concretas.

E aceitar que nos limitados frascos da sua sociologia não cabe tudo o que a vida comporta. Ideologia não acalma o medo de ser assassinado ou agredido na porta de casa, sociologia não é nada diante do murro na cara, da experiência de ser arrastada para trás do tapume, da revolta diante do roubo do celular necessário para o trabalho, ainda a ser pago em dez prestações.

Mas ouvir de verdade cobra um preço do narcisismo e da arrogância. A esquerda estará disposta a pagá-lo?

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

 

7 comentários:

  1. Anônimo3/1/24 13:33

    WILSON GOMES!
    ■Incrível como alguém pode se negar a refletir sobre as colocações que faz Wilson Gomes.

    A esta hora centenas e centenas de petistas já leram este artigo e, em vez de refletirem sobre o que trás Wilson Gomes, o estão xingando enraivecidamente pela Internet, inclusive seus colegas sociólogos.

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    1. Anônimo3/1/24 13:40

      ■■E quando param para considerar as colocações do sociólogo Wilson é para usar de modo ardiloso para tirar proveito particular para suas madrastas "progressistas".
      ■Eu penso que Wilson é bem generoso em ainda tratar esse segmento anti-ocidental como progressista. Até porque há total incoerência em ser antiocidental, ameaçar os valores e princípios que constituem as essencialidades ocidentais, e ser um progressista.

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    2. Anônimo3/1/24 13:44

      Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Anônimo3/1/24 15:22

      ■Como alguém é progressista e trama contra as democracias?
      ■Como alguém é progressista e se cumplicia aos interesses de ditaduras e autocratas?
      ■Como alguém é progressista e atua em conjunto com a imprensa eletrônica dos regimes da Rússia, China, Irã, Venezuela, Coreia do Norte...?

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  2. Anônimo3/1/24 15:25

    Onde está escrito 'madrasta', leia-se:: madrassa.

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  3. Excelente! Aguardo as 3 outras propostas!

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