Folha de S. Paulo
PEC que limita decisões de ministros põe STF
diante de uma encruzilhada
Qual é o alcance da autoridade jurisdicional
de uma corte suprema para rever a constitucionalidade de atos dos outros
Poderes e declarar inconstitucional uma proposta de emenda constitucional
aprovada adequadamente no plano formal —mas discutível no plano substantivo—
pelo Legislativo?
A relação entre democracia e jurisdição
constitucional se esgota na tomada de uma decisão judicial? Questões como essas
surgiram quando o Senado
aprovou uma PEC limitando
as decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal, sob a
justificativa de evitar que a Justiça estaria invadindo as áreas de atuação do
Executivo e do Legislativo.
Em resposta a elas, dois fatos não podem ser desprezados. Como, pela Constituição, o STF detém o poder derivado concedido pelo poder constituinte originário para controlar a constitucionalidade das leis, essa prerrogativa sempre implica risco de crise institucional. Além disso, conscientes dos absurdos da ditadura militar, os constituintes incluíram na Constituição cláusulas pétreas em matéria de direitos e estrutura de poder. Com isso, a Constituição transferiu temas do campo da política para o campo do direito, com o objetivo de evitar que novas configurações do Legislativo resultantes de maiorias parlamentares episódicas gerassem caos jurídico no país.
Assim, como nem mesmo PECs aprovadas
adequadamente no plano formal pelo Legislativo podem restringir esse direito e
essa estrutura de poder, segundo a Carta, não restou ao Executivo e ao
Legislativo outra saída a não ser apelar para a judicialização no âmbito do
STF. Ou seja: à tentativa de fazer com que a corte, devidamente demandada por
ações de controle de constitucionalidade, passasse a interpretar a Carta
conforme as agendas dos dirigentes dos dois Poderes.
Só entre 1988 e 2008, foram propostas na
corte 4.000 ações de inconstitucionalidade. Como muitas não prosperaram, surgiu
então a ideia de ativismo judicial, invocado por quem jamais aceitou que o STF
fosse uma trava para os demais Poderes. Também foi aí que começaram as pressões
sobre o STF, resultando na PEC recém-aprovada pelo Senado que limita as
decisões monocráticas de seus ministros.
Com isso, o STF está diante de uma
encruzilhada. Se ceder às pressões, algumas das quais estão vindo sob a forma
de um convite para um diálogo entre os Poderes, seus ministros perderão a
independência, que está na base de sua credibilidade. Se recusar esse convite,
o STF estará sujeito a novas ameaças do Legislativo. Por isso, se a PEC for
aprovada pela Câmara e sua constitucionalidade for contestada no STF, seus
ministros ficarão numa posição delicada.
Se não a derrubarem, se desmoralizarão. Se
afirmarem que a PEC é inconstitucional, estarão expostos a riscos. Um deles
pode ser a tentativa das bancadas fisiológica, religiosa e ruralista de
estimular multidões evangélicas e bolsonaristas a tomarem as ruas ou procurarem
segmentos das Forças Armadas aguçando-as a atuarem como "poder
moderador".
Pode parecer exagero, mas não sou fatalista.
Sou apenas um pessimista da razão que leva em conta três pontos e uma triste
lembrança.
Os pontos são: (i) a consciência de que a
autoridade de uma corte suprema para declarar inconstitucional uma PEC sempre
gera tensão num sistema de freios e contrapesos; (ii) a consciência de que, em
seus julgamentos, os ministros do STF seguem não só o direito positivo mas
também seus preconceitos e preferências; (iii) a consciência de que uma
Constituição não é algo sagrado, mas uma afirmação moral derivada de juízos
políticos a respeito de inspirações históricas, ideias, anseios e práticas.
Quanto à lembrança, quem assistiu às afrontas
ao STF nos anos 1960 sabe como uma crise constitucional começa, mas não como
termina.
Adaptando ao Brasil —que sempre esteve
sujeito a situações excepcionais— o que disse certa vez Norberto Bobbio, só o
pessimismo da razão pode despertar quem não se dá conta de que, numa crise
entre Poderes, o "sono da razão" pode resultar em monstruosidades
institucionais.
*Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP.
Excelente! Filosofia e política tratadas com seriedade!
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