terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Andrea Jubé - Do batismo ao trio, Bolsonaro recorre à religião

Valor Econômico

Governo Lula e a esquerda precisam reagir com uma resposta com teor religioso, mas em esferas distintas

Quem não se lembra da cena? Era agosto de 2016, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff caminhava para o fim, o PT agonizava, e o então deputado federal Jair Bolsonaro se deixou batizar no rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo Pereira, de uma das ramificações da Assembleia de Deus. Tudo registrado pelas câmeras, e depois replicado nas redes sociais.

Além de religioso, Everaldo também era presidente nacional do PSC, ao qual Bolsonaro era filiado. Na ocasião, o deputado fluminense já percorria o país como pré-candidato à Presidência, e tentava criar laços com o público evangélico.

Meses depois, Bolsonaro trocou o PSC pelo PSL, e se elegeu presidente. Em 2020, o pastor Everaldo foi preso, acusado de corrupção na área de saúde, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - na mesma operação, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, também do PSC, perdeu o cargo. Everaldo foi solto um ano depois, tornou-se vice-presidente do Podemos, e o resto é história.

A imagem quase bíblica do batismo de Bolsonaro voltou tonitruante à memória de auxiliares do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de lideranças da esquerda após o ato político deste domingo, na avenida Paulista, que reuniu cerca de 185 mil apoiadores do ex-presidente - público calculado pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP).

“Como não enxergamos ali um projeto de poder em andamento?”, questionou em conversa com a coluna o deputado federal Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), ligado à Igreja Batista. Com graduação em ciências sociais, história e teologia, ele é uma das poucas lideranças da bancada religiosa do Congresso ligadas à esquerda.

O batismo no rio Jordão também foi lembrado por uma liderança do PT, que acompanha Lula desde a fundação do partido. Este petista, que pediu anonimato, reconheceu que a legenda desconectou-se da população mais pobre quando, após vencer três eleições presidenciais consecutivas, viu suas lideranças se perderem num emaranhado de burocracia e denúncias de corrupção. Esta fonte não se conforma que o PT tenha perdido qualquer trânsito na esfera religiosa, sendo um partido que teve como um dos braços fundadores a Igreja Católica, por meio das comunidades eclesiais de base.

O evento de domingo foi um ato político e religioso. Sob investigação do Supremo Tribunal Federal (STF), coube a Bolsonaro adotar um tom moderado no discurso pelo qual buscou se defender das acusações de liderar uma tentativa de golpe contra a democracia após perder as eleições em 2022.

Em contraponto, todavia, os discursos mais veementes, inclusive, com ataques ao STF, partiram das principais lideranças religiosas: do pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e do senador Magno Malta (PL-ES), pastor e cantor gospel. O ato, inclusive o trio elétrico que serviu de palanque, foi financiado pela Associação Vitória em Cristo, instituição vinculada à igreja de Malafaia, conforme ele próprio esclareceu.

A abertura do evento foi um discurso em tom de sermão religioso da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, na qual a direção nacional do PL vem apostando todas as fichas como herdeira natural do espólio político do marido, declarado inelegível pela Justiça Eleitoral.

Michelle deu um show invejável a qualquer artista gospel. Diante das dezenas de milhares de pessoas, muitas empunhando bandeiras de Israel, ela abusou da expressão corporal: caminhou de um lado para o outro sobre o trio elétrico, embargou a voz, ensaiou um choro. Desafiou os críticos ao afirmar que é permitido, sim, “misturar política com religião”. Concluiu, em exaltação, exortando a multidão a repetir com ela, sete vezes, “glória a Deus”.

Se o que Bolsonaro buscava era a fotografia de uma multidão em volta dele, para mostrar à Justiça e aos adversários que não está sozinho, a segunda mensagem é de que ele e seu grupo político ainda detêm a interlocução privilegiada com os evangélicos, que formam cerca de 30% da população.

“Eles [grupo de Bolsonaro] têm esse projeto que usa a política como expressão de um fundamentalismo religioso, e usa a religião como expressão de um extremismo político”, definiu o Pastor Henrique Vieira. Ele afirma que o bolsonarismo, no uso da religião, não respeita a pluralidade religiosa nem a diversidade da população.

Ao citar os exemplos de personalidades como Dom Hélder Câmara, morto em 1999, e Irmã Dulce, morta em 1992, que atuaram politicamente em defesa dos pobres e dos direitos humanos, Vieira pondera, que nessas situações, a mistura de religião e política foi positiva. “É diferente de um projeto de poder porque o Estado não pode ser expressão de uma doutrina”, alertou.

Para Vieira, o governo Lula e a esquerda precisam reagir com uma resposta com teor religioso, mas em esferas distintas. Ele ponderou que o Executivo federal não pode cair na armadilha “sedutora” de “cristianizar o governo”, porque o Brasil é um país marcado pela diversidade de raças e de crenças, e o Estado, segundo a Constituição Federal, é laico.

Para o pastor, o governo tem que avocar um diálogo interreligioso para melhorar o ambiente político e fortalecer a democracia. E a esquerda tem que fortalecer suas fileiras com lideranças religiosas para disputarem a narrativa da fé pela busca da justiça social, igualdade e erradicação da fome.

 

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