Valor Econômico
Governo Lula e a esquerda precisam reagir com uma resposta com teor religioso, mas em esferas distintas
Quem não se lembra da cena? Era agosto de
2016, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff caminhava para o
fim, o PT agonizava, e o então deputado federal Jair Bolsonaro se deixou
batizar no rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo Pereira, de uma das
ramificações da Assembleia de Deus. Tudo registrado pelas câmeras, e depois
replicado nas redes sociais.
Além de religioso, Everaldo também era
presidente nacional do PSC, ao qual Bolsonaro era filiado. Na ocasião, o
deputado fluminense já percorria o país como pré-candidato à Presidência, e
tentava criar laços com o público evangélico.
Meses depois, Bolsonaro trocou o PSC pelo PSL, e se elegeu presidente. Em 2020, o pastor Everaldo foi preso, acusado de corrupção na área de saúde, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - na mesma operação, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, também do PSC, perdeu o cargo. Everaldo foi solto um ano depois, tornou-se vice-presidente do Podemos, e o resto é história.
A imagem quase bíblica do batismo de
Bolsonaro voltou tonitruante à memória de auxiliares do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e de lideranças da esquerda após o ato político deste domingo, na
avenida Paulista, que reuniu cerca de 185 mil apoiadores do ex-presidente -
público calculado pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital, da
Universidade de São Paulo (USP).
“Como não enxergamos ali um projeto de poder
em andamento?”, questionou em conversa com a coluna o deputado federal Pastor
Henrique Vieira (Psol-RJ), ligado à Igreja Batista. Com graduação em ciências
sociais, história e teologia, ele é uma das poucas lideranças da bancada
religiosa do Congresso ligadas à esquerda.
O batismo no rio Jordão também foi lembrado
por uma liderança do PT, que acompanha Lula desde a fundação do partido. Este
petista, que pediu anonimato, reconheceu que a legenda desconectou-se da
população mais pobre quando, após vencer três eleições presidenciais
consecutivas, viu suas lideranças se perderem num emaranhado de burocracia e
denúncias de corrupção. Esta fonte não se conforma que o PT tenha perdido
qualquer trânsito na esfera religiosa, sendo um partido que teve como um dos
braços fundadores a Igreja Católica, por meio das comunidades eclesiais de
base.
O evento de domingo foi um ato político e
religioso. Sob investigação do Supremo Tribunal Federal (STF), coube a
Bolsonaro adotar um tom moderado no discurso pelo qual buscou se defender das
acusações de liderar uma tentativa de golpe contra a democracia após perder as
eleições em 2022.
Em contraponto, todavia, os discursos mais
veementes, inclusive, com ataques ao STF, partiram das principais lideranças
religiosas: do pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em
Cristo, e do senador Magno Malta (PL-ES), pastor e cantor gospel. O ato,
inclusive o trio elétrico que serviu de palanque, foi financiado pela
Associação Vitória em Cristo, instituição vinculada à igreja de Malafaia,
conforme ele próprio esclareceu.
A abertura do evento foi um discurso em tom
de sermão religioso da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, na qual a direção
nacional do PL vem apostando todas as fichas como herdeira natural do espólio
político do marido, declarado inelegível pela Justiça Eleitoral.
Michelle deu um show invejável a qualquer
artista gospel. Diante das dezenas de milhares de pessoas, muitas empunhando
bandeiras de Israel, ela abusou da expressão corporal: caminhou de um lado para
o outro sobre o trio elétrico, embargou a voz, ensaiou um choro. Desafiou os
críticos ao afirmar que é permitido, sim, “misturar política com religião”.
Concluiu, em exaltação, exortando a multidão a repetir com ela, sete vezes,
“glória a Deus”.
Se o que Bolsonaro buscava era a fotografia
de uma multidão em volta dele, para mostrar à Justiça e aos adversários que não
está sozinho, a segunda mensagem é de que ele e seu grupo político ainda detêm
a interlocução privilegiada com os evangélicos, que formam cerca de 30% da
população.
“Eles [grupo de Bolsonaro] têm esse projeto
que usa a política como expressão de um fundamentalismo religioso, e usa a
religião como expressão de um extremismo político”, definiu o Pastor Henrique
Vieira. Ele afirma que o bolsonarismo, no uso da religião, não respeita a
pluralidade religiosa nem a diversidade da população.
Ao citar os exemplos de personalidades como
Dom Hélder Câmara, morto em 1999, e Irmã Dulce, morta em 1992, que atuaram
politicamente em defesa dos pobres e dos direitos humanos, Vieira pondera, que
nessas situações, a mistura de religião e política foi positiva. “É diferente
de um projeto de poder porque o Estado não pode ser expressão de uma doutrina”,
alertou.
Para Vieira, o governo Lula e a esquerda
precisam reagir com uma resposta com teor religioso, mas em esferas distintas.
Ele ponderou que o Executivo federal não pode cair na armadilha “sedutora” de
“cristianizar o governo”, porque o Brasil é um país marcado pela diversidade de
raças e de crenças, e o Estado, segundo a Constituição Federal, é laico.
Para o pastor, o governo tem que avocar um
diálogo interreligioso para melhorar o ambiente político e fortalecer a
democracia. E a esquerda tem que fortalecer suas fileiras com lideranças
religiosas para disputarem a narrativa da fé pela busca da justiça social,
igualdade e erradicação da fome.
Perfeito!
ResponderExcluirExatamente,eu só leio artigos exatos hoje,rs.
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