quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Cláudio Carraly* - Desmilitarização da Polícia e o Ciclo Completo de Polícia

A questão da desmilitarização da polícia no Brasil é um tema complexo e controverso, que tem gerado debates acalorados em diversos setores da sociedade. A estrutura policial no Brasil é notoriamente militarizada, uma herança direta da ditadura que governou o país até 1985. As polícias militares, país afora são as principais forças de segurança ostensiva do Brasil, e operam sob uma estrutura hierárquica rígida, inspirada nas Forças Armadas. Essa estrutura militarizada pode contribuir para uma abordagem mais autoritária e punitiva, em detrimento de uma abordagem orientada para a proteção dos direitos humanos e a resolução pacífica de conflitos. Ressalte-se que em vários casos operam como uma espécie de “guarda pretoriana” dos governadores, que utilizam essa força de forma não republicana contra os interesses coletivos, porém não só a população sofre os reflexos dessa estrutura, os próprios policiais são oprimidos e perseguidos nesse sistema, punidos não raro de forma injusta e desproporcional por seus superiores, tudo isso por conta da manutenção dessa inexplicável mecânica militarizada. 

O Brasil é frequentemente citado como um dos países com mais altos índices de violência e homicídios. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, o país registrou uma taxa de homicídios de 23,4 por 100 mil habitantes em 2022. Países que optaram por ter forças de polícia desmilitarizadas, baseadas em princípios de policiamento comunitário, ênfase na resolução pacífica de conflitos e treinamento especializado em direitos humanos, chegaram a índices muito mais eficientes relativos a homicídios além de melhoria significativa nos crimes patrimoniais. Na contramão o Brasil apresenta um índice de resolutividade criminal baixíssimo, além  de ineficaz na promoção da segurança e prevenção do uso excessivo da força policial. Outro fator fundamental do fracasso do sistema militarizado no país, é a dificuldade de estabelecer o “ciclo completo de polícia” que ajuda a tornar ineficiente o trabalho da polícia forense no Brasil.

O ciclo completo de polícia refere-se ao processo em que uma única instituição policial é responsável por todas as etapas de investigação e aplicação da lei, desde a prevenção do crime até a resolução e conclusão dos casos. No contexto brasileiro, o sistema de segurança pública é dividido entre a Polícia Civil, responsável pela investigação criminal, e a Polícia Militar, encarregada do policiamento ostensivo e preservação da ordem pública. A proposta de unificação das polícias civil e militar em uma estrutura não militarizada tem sido debatida como uma possível forma de melhorar a eficiência, a cooperação e a abordagem da segurança pública no país. A desmilitarização da polícia e consequente unificação do ciclo completo de polícia no Brasil poderia trazer uma série de benefícios: 

1. Eficiência e Cooperação: A separação entre a Polícia Civil e a Polícia Militar muitas vezes resulta em falta de comunicação e coordenação entre as duas instituições. A unificação poderia melhorar a cooperação entre as diferentes etapas da aplicação da lei, desde a investigação até a abordagem nas ruas, tornando a resposta ao crime mais eficiente.

2. Redução de Conflitos: A existência de duas instituições policiais distintas pode criar situações de tensão e conflito, especialmente em momentos de crise ou confronto. Uma força policial unificada poderia ajudar a reduzir a atual  polarização entre as forças policiais, que dificultam o comando unificado do aparato policial e resolução eficiente das contingências apresentadas. Hoje o que vemos na maioria dos casos é sobreposição de comando, retrabalho, ou a cotidiana solução de continuidade. 

3. Resolutividade na Investigação Criminal: Ao unificar as polícias, a expertise investigativa da atual Polícia Civil poderia ser melhor aproveitada, proporcionando uma abordagem mais técnica e especializada para resolver crimes complexos. Isso poderia contribuir para uma maior resolução de casos e uma melhor administração da justiça. Com as forças unificadas e dialogando com a inteligência policial seria finalmente elevada ao lugar que deveria estar.

4. Ênfase na Abordagem Comunitária: Uma estrutura não militarizada poderia promover uma abordagem mais centrada na comunidade, focando na prevenção do crime e na construção de laços de confiança com os cidadãos a chamada “policia de proximidade”, Isso poderia melhorar a relação entre a polícia e a sociedade, reduzindo incidentes de abuso de poder e violência policial.

5. Prestação de Contas e Economia: Uma estrutura unificada e não militarizada poderia facilitar a prestação de contas por parte das autoridades policiais, já que haveria menos divisões hierárquicas complexas. Isso poderia contribuir para um ambiente mais transparente e responsável. Além de economia ao erário publico que não precisará contar com estrutura dupla de administração e monitoramento, diminuindo assim os custos com a máquina de segurança publica em todo país.

Diante dos altos índices de violência e da crescente desconfiança da população em relação à polícia, a discussão sobre a desmilitarização da polícia no Brasil se torna crucial. Países que adotaram modelos de forças policiais desmilitarizadas apresentam índices de violência mais baixos além de um corpo policial mais satisfeito e competente. Embora desafios existam, a reestruturação da polícia para uma abordagem mais orientada para comunidade resultará em uma sociedade mais segura e justa para o conjunto da população. A polícia no Brasil deve ser orientada para comunidade e focada na prevenção dos crimes, que por sua vez pode facilitar a cooperação da comunidade na investigação de crimes e na manutenção da ordem pública.

O fato definitivo é que bilhões são gastos em segurança pública e privada no país e inegavelmente observamos ano após ano, o fracasso da politica de segurança publica como é. A velha solução do mais homens e mais armas não resolveu, caso contrário já estaríamos vivendo numa sociedade segura e pacificada. Precisamos parar de fazer mais do mesmo e termos coragem para mudar o que definitivamente não funciona e nem nunca funcionará, mesmo que para isso tenhamos que desconstruir heranças institucionais centenárias, que se esgotaram há décadas, rompamos pois com elas, o medo de não mudar nos agarra ao estabelecido, mesmo que este seja ruim, ineficiente e danoso. Ousar é necessário nesses momentos definidores, quebrar paradigmas é difícil, mas para avançarmos civilizatoriamente por vezes é necessário um misto de fé e coragem. Muita coragem e fé então!

*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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